- O New York Times e a
Pravda são os primeiros jornais do mundo a anunciar e a felicitar o povo
português pela sua libertação.
- Do Brasil, o então embaixador, Dr. José Hermano Saraiva diz que «em
Portugal se vivem momentos graves e para que todos os portugueses se mantenham
calmos.
- Não se realiza, em Lisboa, a procissão de Nossa Senhora da Saúde.
Com gente, procurando gente, pontes e
vales, tem sido assim esta vida.
E houve aquele dia, 25 de Abril de 1974.
Dizem que por um Abril houve uma
revolução, outros dizem que houve um golpe de estado, outros ainda que houve
uma abrilada, sucederam coisas gritadas nas ruas, outras soavam nas sombras
clandestinas.
Na escola disseram aos miúdos que tinham
que ir para casa, estava a acontecer qualquer coisa em Lisboa.
Que comemoramos hoje? Que resta daquele
dia?
O chefe de redacção telefonou ao repórter,
gritou-lhe: Salta da cama. A Revolução está na rua e é precisos
escrevê-la!
Isso é passado, é tão passado que eu já
não comemoro o 25 de Abril. Sentir-me-ia um irresponsável celebrando qualquer
coisa de que hoje não posso ver nenhum sinal, daquilo que o 25 de Abril trouxe.
Podemos saudar o desespero que nos invadiu
perante algo que falhou?
Estragaram a tua festa pá!, cantaram no
outro lado do Atlântico.
Houve quem dissesse que as revoluções são
sonhadas por idealistas e realizadas por fanáticos, e quem delas se aproveita
são os oportunistas de todas as espécies.
O 25 de Abril é um dia e são dias. É
daquelas datas que se constelam que estão antes de hoje, que hoje ecoam ainda,
e que tremeluzirão no depois de hoje.
Quase sem darmos por isso, milhares de
pessoas invadiram as ruas, ofereceram pão e cravos aos soldados, deram as mãos,
sorriram, dos olhos saltavam sonhos e esperanças.
Alguém perguntou como era possível tanta e
tanta gente quando meses antes, semanas antes, dias antes, eram tão poucos
aqueles que apareciam para escrever palavras de ordem nas paredes da cidade,
colar cartazes, distribuir uns panfletos impressos a stencil…
Será a memória curta? Apaga-se com
facilidade?
O apagamento de memória é chocante.
Deste dia até ao 1º de Maio, é
provável que muitos devem ter dormido, mas não se lembram bem. Uma semana de
loucura já ninguém me tira, posso não ser feliz mas poucos chegaram tão perto
disso a que chamam felicidade.
É preciso ter vivido os anos
terríveis, o tempo do desprezo, um tempo de ratazanas, para que aquele dia
tivesse sido o que foi, um navio de sonho, uma nave de loucos, protagonistas
duma enorme esperança, depois figurantes de um grande desencanto.
Terá sido assim há tanto tempo?
A ditadura acabou por ser derrubada por
militares que antes desprezávamos.
Dezassete horas e 45 minutos bastaram para
abater um regime que oprimiu um povo durante 47 anos, 10 meses, 34 dias e
algumas horas.
Teremos feito tudo para que as novas
gerações fossem mais felizes?
Vale a pena assinalar a data quando
nos esquecemos de ensinar a importância que aquele dia nos trouxe? Olham-se as
pessoas de hoje, os jovens de hoje, formam um grupo largo e variado mas,
olhando bem, estamos todos muito mal no retrato de conjunto…
Algures, numa dobra da história, alguma
coisa falhou. O cantor, de viola às costas, acabou por dizer que houve alguém
que se enganou.
A culpa é de todos, a culpa não é de
ninguém.
Naqueles dias, quase poderíamos dizer que
a paisagem mudara para sempre.
As paisagens até podem mudar, o resto… o
resto… o resto… é uma chatice… um busílis de questão…
O escritor perguntava e respondia: para
que serve a utopia? Serve para que eu não deixe de caminhar.
Um dia voltaremos a encontrar-nos todos no
imponderável azul celeste.
E recomeçamos a busca dum país liberto,
duma vida limpa e dum tempo justo.
Mas será que ainda verei alguém desenhar
os nomes daqueles que, na sombra, nos lixaram a festa?
Montagem concebida com textos de:
Jorge Silva Melo, Virgílio Martinho,
Baptista-Bastos, José Saramago, Rui Cardoso Martins, Chico Buarque, Manuel
António Pina, Manuel Gusmão, Rodrigues da Silva, João Gobern, José Mário
Branco, Eduardo Galeano, Mário Dionísio, Cristina Carvalho, Sophia de Mello
Breyner Andresen.
Legenda: ilustração de António Pimentel para o livro As Portas Que
Abril Abriu de José Carlos Ary dos Santos.
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma Ei-la na escuridão serena resistindo Hierática Estranha Sem medida Maior do que a tortura ou o assassínio Ei-la virando-se na cama Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva seminua sensual e no entanto pura Noiva e mãe de três filhos Namorada e prostituta Virgem desamparada e mundana infiel Corpo solar desejo amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma em praças ruas becos boîtes e monumentos
Ei-la ocupada inerte desventrada com música de tiros e chicote
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada ignóbil e miraculosamente erecta branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplendente de amor teoria e prática nocturna mistério acontecido doce habitável ah sobretudo habitável vestido acolhedor café à noite a voz distante e amada ao telefone
Ei-la a que fica e sobrevive e reflecte neons nos lagos do jardim mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida esperamos por ela tanto tempo que tememos olhar o seu perfil exacto flor da raiz que somos meu amor
Tomemos
então, nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência e
a mesma força com que reivindicarmos os nossos direitos, reivindiquemos também
o dever dos nossos deveres.
Será um desfilar de histórias, de
opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e
figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia,
mês, ano em que aconteceram.
24
de Abril de 1974
Quando o país bocejante se deitou, só alguns dos seus habitantes, muito poucos,
sabiam que esta não seria uma noite igual a tantas outras, seria mesmo uma
noite invulgar.
Quando os espectadores que assistiram à “Traviata”, começaram a sair do
Coliseu, já João Paulo Dinis, na emissão do Rádio Peninsular dos Emissores
Associados, tinha enviado o primeiro sinal para os militares: “Faltam cinco minutos para as 23,00 horas.
Convosco, Paulo de Carvalho com o Eurofestival 74 – E Depois do Adeus”.
O “Diário de Notícias” há-de escrever que um Coliseu,
repleto de público, assistiu a uma récita da “Traviata” com Alfred Kraus e que
consagrou Joan Sutherland e que a récita terminou em delírio colectivo, com
ovações intermináveis e inúmeros cravos atirados das frisas.
O MESMO DIÁRIO DE NOTÍCIAS, publica na 1ª página um editorial com o título:
“Balas de Papel”. Terminava assim: “Só nós, Portugueses, somos senhores do
nosso destino. E estamos tão estoicamente empenhados na defesa dos lusos
territórios ultramarinos, como preparados para enfrentar as batalhas de
opinião, desencadeadas – sabe-se lá – por que interesses feridos ou
conveniências não acauteladas…
Parece-nos, entretanto, oportuno prevenir os franco-atiradores dispersos pelos
países amigos, de que não receamos as balas de papel – como não tememos as
outras. Elas não conseguirão desalojar-nos das atitudes assumidas e das
posições tomadas.”
LOGO PELA MANHÃ, Otelo Saraiva de Carvalho desloca-se à estação dos CTT da
Estefânia, fronteira à Academia Militar, de onde envia para os Açores o
telegrama codificado que combinara com Melo Antunes, com a data e a hora do
golpe:
“Tia Aurora parte Estados Unidos 250300. Primo
António.”
EM CONVERSA TELEFÓNICA com um dos seus ministros, que lhe dá conta dá conta de
movimentações militares, Marcelo Caetano terá dito:
“Isso é mais um boato desgastante”
Marcelo Caetano no seu “Depoimento”, publicado no exílio no Brasil, escreve que
“a
Revolução veio efectivamente de surpresa.”
O chefe de Estado, almirante Américo Tomás
deslocou-se à Feira Internacional de Lisboa para uma visita ao Salão de
Antiguidades. Será este o último acto oficial como mestre-corta-fitas da
ditadura.
FORAM ESTAS AS últimas determinações, dos
serviços de censura do reino, para os jornais que se publicavam no Porto.
PARA O DIA 25, os serviços de meteorologia previam: “Céu pouco nublado, por
vezes muito nublado; vento fraco de norte; possibilidade de trovoada e
aguaceiros”
NOS PRIMEIROS VINTE MINUTOS DO NOVO DIA, no programa “Limite”, transmitido
pelos emissores da Rádio Renascença, o locutor Leite de Vasconcelos dirá a
primeira quadra de “Grândola, Vila Morena” e começam a ouvir-se aqueles passos
cadenciados na estrada que anunciam que “o povo é quem mais ordena, dentro de
ti ó cidade.”
O navio de sonhos largara do cais de silêncio rumo à estrela polar.
Chegara o Dia das Surpresas.
Como nos anos 60, ouvindo Beethoven,
poetisara José Saramago.
Vasco Gonçalves, a defesa lúcida dos trabalhadores, o democrata que não
pactuava com manobras palacianas, que não aceitava pressões externas
humilhantes, que sabia bem como a divisão dos militares progressistas
enfraquecia perigosamente a Revolução, é objecto de uma das mais demagógicas campanhas
de difamação de que há memória neste País (período fascista incluído), campanha
que, por vezes, atingiu a vileza, pela mentira, pelo despudor, pela ausência de
ética, pela irresponsabilidade.
O Luís Miguel Mira apresenta hoje, pelas 15,00
horas na Nova Atena, Universidade Senior,
na Rua Almeida Garrett, 20, em Linda-a-Velha, «O Inimigo Público» de
Woody Allen:
O INIMIGO PÚBLICO
(1969)
(Take the
Money and Run)
Realização:
Woody Allen
Argumento:
Woody Allen e Mickey Rose
Montagem:
Ralph Rosenblum, James T. Heckert, Paul Jordan e Ron Kalish
Fotografia:
Lester Shorr
Música:
Marvin Hamlisch e Felix Giglio
Direção
Artística: Fred Harpman
Interpretação:
Woody Allen (Virgil Starkwell), Janet Margolin (Louise), Ethel Sokolow (a mãe
de Virgil), Henry Leff (o pai de Virgil), Don Frazier (o psiquiatra), Jacquelyn
Hyde (mademoisele Blair), James Anderson (o guarda prisional), Marcel Hillaire
(Fritz), Lonny Chapman (Jake), Louisse Lasser (Kay Lewis), Jackson Beck
(a voz do narrador), etc
Produção:
Sidney Glazier, Charles H. Joffe e Jack Grossberg, para a Palomar Pictures
International
Duração: 85
mn
No que
respeita ao “Riso”, já por aqui passaram pela mão do Prof. Jorge Barata Preto,
no âmbito deste recente ciclo “O Riso e as Lágrimas”, alguns dos principais
vultos da Comédia Americana: Charles Chaplin, Buster Keaton, os Irmãos Marx,
Jerry Lewis, Mel Brooks.
Dos grandes
“Clássicos”, julgo que só faltaram Harold Lloyd, Harry Langdon, Stan Laurel e
Oliver Hardy (o Bucha e o Estica…), W. C. Fields e talvez Woody Allen, embora
não esteja certo de que ele não tenha por aqui passado noutro ciclo…
Para além
destes, houve uma série de comediantes americanos de grande sucesso no seu
tempo, mas para os quais a memória dos cinéfilos não foi tão generosa como em
relação aos outros que mencionei: falo-vos de nomes como Eddie Cantor, Bob
Hope, Bud Abbot e Lou Costello (o Gordo e o Magro), Danny Kaye e, muito mais
recentemente, Jim Carrey, “o novo Jerry Lewis”.
Embora tenha
com ele uma relação de Amor/Ódio, escolhi para concluir a minha intervenção
neste ciclo um filme de Woody Allen, porque ele merece estar ao lado dos
maiores.
Mas porquê esse
Amor/Ódio, perguntar-me-ão vocês, talvez intrigados, tal a unanimidade que o
autor de “Annie Hall” habitualmente suscita…?
Amor, porque
gosto muito de muitos dos filmes de Woody Allen.
Ódio (a
palavra é excessiva, confesso…), porque a ascensão de Allen correspondeu ao
declínio de Jerry Lewis, que era o meu ídolo de infância, de adolescência e até
de juventude, através dos filmes dele que frequentemente via na televisão e das
saudosas retrospetivas mais tarde organizadas nos anos 70 por Lauro António, no
Apolo 70 e no Caleidoscópio.
É que, na
verdade, entre 1969 (data do primeiro filme de Allen) e 1983 (data do último
filme de Lewis), o autor de “O Homem das Mulheres” apenas teve oportunidade de
realizar cinco filmes (um dos quais, “Le Jour oú le Clown Pleura”, realizado em
França e na Suécia em 1972, ainda hoje se mantém inédito…), enquanto o autor de
“Manhattan” realizou dez. E, a partir de então e até hoje, Allen realizaria
pelo menos um todos os anos, só falhando em 2018, 2021 e 2022.
E é claro que
culpei Woody Allen pela caída em desgraça de Jerry Lewis…
Antes de
entrar em força no Cinema já Allen era um nome sobejamente conhecido no meio
cultural americano, e sobretudo na cena nova-iorquina.
Começou a
trabalhar nos anos 50, ainda adolescente, escrevendo diálogos para a televisão.
O sucesso que
teve levou-o a ser chamado a colaborar com comediantes de cada vez maior
nomeada, para os quais escrevia sketches para shows, peças de
teatro e revistas da Boadway que viriam a obter grande sucesso.
Farto de
ficar na sombra e de ver os outros beneficiarem, em fama e proveito, do seu
próprio trabalho, Allen, embora já na altura muito bem pago para a sua idade,
decidiu ultrapassar a sua timidez natural e subir sozinho ao palco em 1961,
vindo a tornar-se um dos principais vultos da chamada stand-up comedy
americana, com digressões por teatros e night clubs de todo o país e
presença assídua na televisão. E o seu sucesso não se iria limitar aos
“monólogos” que fazia em palco, porque também já começara a escrever para
diversas publicações de prestígio, como era o caso da “New Yorker”, e as
gravações em disco de alguns dos seus espetáculos também obtiveram êxito,
levando-o, até, a ganhar um Grammy por uma delas em 1964.
Allen viria a
estrear-se no cinema em 1963, escrevendo o argumento e desempenhando um papel
secundário em “O Que Há de Novo Gatinha” (“What’s New Pussycat”), de Clive
Donner, que alguns de vós provavelmente se recordarão de ter visto no antigo
cinema São Jorge, já que por cá obteve um grande sucesso, com a inesquecível
música do Tom Jones.
Seguir-se-ia,
em 1967, “Casino Royale”, muito maltratado por diversos realizadores, entre
eles John Huston, do qual foi coargumentista, para além de ter, igualmente, um
pequeno papel como ator.
Cansado da
maneira, que considerava desajustada, como os seus argumentos eram postos em
cena (em 1969 estreara-se, também, “Don’t Drink the Water”, realizado por
Howard Morris e baseado numa peça sua), Allen começou a acalentar a ideia de
ser ele próprio a realizar os filmes que escrevia.
Mas ainda
antes disso, lançou-se numa obra bizarra: pegar num anónimo filme japonês,
misto de policial e de “kung-fu”, retirar-lhe a banda sonora original e
substituí-la por uma inteiramente concebida por si, tanto na escolha da música
como na escrita dos diálogos. O resultado deu pelo nome de “What’s Up Tiger
Lily” e foi lançado nos Estados Unidos em 1966. O DVD que tenho na minha
coleção chama-se “O Que se Passa, Tigresa?”, mas não tenho qualquer memória da
estreia deste filme em Portugal.
É só por isso
que “O Inimigo Público”, o nosso filme de hoje, surge em segundo lugar na
filmografia de Woody Allen enquanto realizador, apesar de ter sido, na verdade,
o primeiro filme escrito, realizado e interpretado por si. E esse sim,
lembro-me muito bem onde se estreou em Lisboa: no saudoso Cinema Berna, que
ficava nas Avenidas Novas, mesmo ao lado da Igreja de Nossa Senhora de Fátima.
Oito anos e
quatro comédias mais ou menos burlescas depois (para além de participação, como
ator principal, em dois outros filmes não por si realizados), Allen obteria, em
1977, o maior dos seus êxitos na América, com os quatro Óscares recebidos por
“Annie Hall”.
A partir
daqui o cinema de Woody Allen não mais seria o mesmo, mas a sua carreira não é
o principal objeto deste texto.
Fiquemo-nos,
pois, por “O Inimigo Público”, realizado em 1969.
Em tom sério
de documentário, com a voz “off” de um narrador, excertos de entrevistas ao
próprio Virgil e a outras pessoas que lhe são próximas ou que com ele se
relacionaram pontualmente (o pai e a mãe, devidamente disfarçados para não
passarem a vergonham de se verem associados ao filho, a mulher, o psiquiatra
que o acompanhou, o juiz que o condenou, colegas de prisão, vizinhos e amigos
de infância, etc), o filme conta-nos a história de Virgil Starkwell,
considerado um dos mais perigosos criminosos daquela época, desde os primeiros
tempos de delinquência juvenil no bairro desfavorecido de Baltimore onde
nascera, até à sua derradeira e mais penosa condenação.
Pelo meio são
evocadas outras peripécias da sua vida: os primeiros assaltos, as primeiras
vivências na prisão, as primeiras tentativas de fuga, a libertação que
conseguiu por se ter oferecido como cobaia para experiências com uma nova
vacina nunca antes testada num Ser Humano, a forma como conheceu a sua mulher,
ternamente contada pelo próprio Virgil, que nos confessa tê-la visto deitada na
relva de um jardim e lhe pretender roubar a mala, mas que lhe bastaram 15
minutos de conversa com ela para se aperceber que era essa a mulher dos seus
sonhos com quem se desejaria casar, e que 30 minutos depois já tinha desistido,
em definitivo, da ideia de lhe roubar a carteira...
Casado e com
novas responsabilidades familiares no horizonte, Virgil, como todo o bom
criminoso que se preza, sonha em dar o último e definitivo golpe que lhe
assegurará, para sempre, a subsistência da família, mas a coisa corre-lhe mal.
É condenado a trabalhos forçados numa prisão de alta segurança, mas,
persistente como é, dela também se consegue libertar, na companhia de outros
reclusos.
De novo ao
lado da mulher e do filho, Virgil tenta seguir caminhos mais honestos, mas não
se consegue adaptar a essa vida. Uma nova tentativa de assalto volta a
correr-lhe mal e vamos encontrá-lo, no final, condenado a 800 anos de prisão
por 52 assaltos, embora, otimista como sempre, ele esteja esperançado de que,
se tiver um comportamento exemplar, essa pena lhe possa ser reduzida a metade.
Mas nem por isso deixa de se preocupar em construir, artificialmente, uma
pistola…
Quanto à
profissão que escolheu, diz que não se arrepende de nada… “Somos onosso
próprio patrão, tem -se liberdade de horário, viaja-se imenso, conhece-semuita
gente interessante”… Que mais se pode desejar…? Uma única tristeza lhe
ficou, certamente: apesar de tão badalado e de ter sido nomeado “Gangster do
Ano”, nunca ter integrado o “Top 10” dos maiores criminosos…
Nas suas
“Memórias”, publicadas em 2020, Woody Allen não se alonga demasiado acerca
deste filme e só parece dar importância a duas coisas: o gozo que lhe deu ter
conseguido filmar no interior da célebre prisão de San Quentin e a preciosa
ajuda que recebeu de Ralph Rosenblum, chamado à última hora para o apoiar na
montagem do filme.
Em relação à
primeira escreve mesmo o seguinte: “o primeiro dia de filmagensseria
na Penitenciária de San Quentin. Todo o meu entusiasmo se prendia com o facto
de ir a uma prisão e ali estarem reclusos e eu veria uma gigantesca casa
icónica, sobre a qual apenas tinha lido ou visto versões em velhos filmes a
preto e branco. Queria lá saber que me estava a estrear como realizador. Era
pela prisão que eu estava fascinado” (1)
Quanto à
segunda, tenho de me deter mais algum vagar, porque é essencial para a
compreensão do próprio filme.
Na sua total
ignorância do que era a realização de um filme, Allen não se preocupou
demasiado com a montagem final nem com a forma como a escolha da música poderia
condicionar, em muito, o próprio ritmo do seu filme.
Preocupou-se,
unicamente e com o apoio dos técnicos que tinha ao seus dispor, em rodar corretamente
cenas cómicas umas atrás das outras, e nisto até se revelou um bom aluno porque
não só acabou as filmagens antes da data prevista, como também conseguiu ficar
aquém do orçamento previsto.
O grande
problema foi que, após realizada a preview screening (2), toda a
produção deitou as mãos à cabeça. O filme era um autêntico desastre. A pouca
música escolhida era desadequada, a montagem não fazia muito sentido, era
evidente a falta de ritmo de toda a obra e estava à vista de todos, incluindo a
de Allen, um verdadeiro descalabro.
Fez-se então
apelo a Ralph Rosenblum, um montador experiente que fez tábua rasa dessa
primeira versão de montagem, visionou todas as bobinas que haviam sido filmadas
e chegou à versão final que hoje conhecemos, à qual juntou música
diversificada, incluindo algumas peças de jazz de New Orleans para fazer
acelerar o ritmo de algumas cenas. Foi considerado o verdadeiro salvador do
filme, que viria a ter algum êxito nos Estados Unidos.
Apesar de
tudo isto, “O Inimigo Público” não deixa de ser um filme algo desequilibrado,
como desenvolverei no final.
Quando
estamos perante a primeira obra de um realizador, sobretudo quando se trata,
como no caso de Woody Allen, de um “Autor” consagrado e detentor de uma vasta
Obra, existe sempre a tendência de nele procurarmos encontrar os primeiros
sinais do “Universo do Autor”, ou seja, o seu estilo, os seus temas prediletos,
as suas obsessões, a sua visão do Mundo, os seus “tiques”…
Ora no caso
de “O Inimigo Público” não será difícil descortinar um esboço daquilo que viria
a ser o trabalho futuro do seu realizador.
Vejamos,
seguidamente, alguns exemplos.
Allen sempre incorporou em muitos dos seus
filmes aspetos autobiográficos. Na primeira versão do guião deste filme,
Virgil chamava-se … Woody Allen!; depois, a forma como retrata os pais de
Virgil é muito semelhante àquela como, ao longo da sua vida artística, nos
foi falando dos seus próprios pais, com uma ligeira diferença: ao
contrário do que sucede no filme, era o seu pai, e não a sua mãe, o mais
tolerante em relação a ele (acerca da sua mãe, Allen chegou a escrever o
seguinte: “ateoria edipiana de Freud de que todos os homens
querem, inconscientemente, matar os pais para casarem com as mães
choca com umaparede de tijolo no que diz respeito à minha mãe…”
(3)); por outro lado, o bairro desfavorecido de Baltimore onde Virgil
passa a sua infância também parece ter alguns traços de semelhança com o
de Midwood, em Brooklyn, onde o próprio Allen deu os primeiros passos e
que tão bem nos mostrou em “Os Dias da Rádio”; tal como Allen, Virgil
também parece gostar de música, mas não ter lá muito jeito para o seu
instrumento favorito; e que me dirão vocês se vos disser que Allen
escolheu para data de nascimento de Virgil (1 de Dezembro de 1935) … o dia
seguinte ao do seu próprio nascimento…; mas a mais deliciosa das private
jokes de Allen parece-me ser a de ter dado à sua mulher Louisse
Lasser, com quem então já estava em acelerado processo de divórcio, aquela
hilariante tirada final, qualquer coisa como isto (cito de memória): “Acho
que ele era um génio. Quando descobri que ele era um criminoso, não
pude acreditar, porque nunca vi ninguém que dissimulasse algo tão bem.
Excelente trabalho de ator. E eu que pensava que ele era um idiota…!”;
2.Tal como
Vigil Starkwell, muitos dos personagens principais dos filmes de Allen são
homens (quase sempre, mas também há mulheres…) torturados e inseguros, com
alguma timidez e complexo de inferioridade resultante, por vezes, de uma
infância castradora, todos estes problemas confluindo numa enorme insegurança
no relacionamento com as mulheres. E, em relação, a Allen, isto também terá
qualquer coisa de autobiográfico…;
3.Pelos
motivos que referi no ponto anterior, muitos dos personagens dos seus filmes
recorrem, ou já recorreram no passado à psicanálise, e isso é sempre mencionado
em tom jocoso. Ora referências à psicanálise são coisas que abundam no filme de
hoje, em especial na hilariante cena em que o seu psicanalista é satirizado,
explicando-nos o papel do violoncelo na mente tortuosa de Virgil… E é também
evidente que, subjacente a todo o filme, está a teoria determinista, então
muito em voga naqueles tempos na Psicologia e na Sociologia, de que é a
família, a educação e o meio envolvente quem mais determina a formação de uma
personalidade. E foi o próprio Allen quem, na altura, afirmou que Virgil
poderia muito bem ter sido ele próprio, se em momentos-chave da sua
adolescência tivesse enveredado por outros caminhos, como alguns dos seus
companheiros do passado o fizeram;
4.Um certo
fatalismo, quase que ilustrando a Lei de Murphy (se algo pode correr mal, é
certo que irá correr (mesmo) mal…) parece acompanhar a vida e a “carreira” do
pobre Virgil, como também a de muitos dos personagens do cinema de Allen;
5.É sabido
que Woody Allen estudou cinema na sua juventude e frequentou avidamente as
salas de cinema, primeiro levado pela mão de uma sua prima 5 anos mais velha e,
mais tarde, por conta própria. Esta cinefilia é algo que se torna evidente em
muitos dos seus filmes. Os seus personagens são, muitas vezes, pessoas ligadas
ao cinema e/ou à televisão, o seu cinema homenageia e cita frequentemente
realizadores como Bergman, Fellini e Antonioni, muitas são as cenas dos seus
filmes que decorrem no interior ou à porta de cinemas ditos “de Arte e Ensaio”,
em cujos letreiros luminosos se anunciam clássicos do cinema americano e
europeu, etc. No filme de hoje, que Allen pretendia realizar a preto e branco e
a Produtora recusou, para além da memória dos velhos documentários que no
passado abriam as sessões de cinema e aos quais me refiro no ponto seguinte, a
inspiração veio-lhe dos velhos filmes de “gangsters” com fundo social, bem como
dos “filmes de prisão” dos anos 30 e 40, em particular “Anjos de Cara Suja” e
“I’m a Fugitive From a Chain Gang”, do qual chega a copiar uma cena inteira. E
as “delicodoces” cenas nos parques e à beira-mar, que aqui surgem claramente
como sátira, eram coisas que abundavam no cinema americano dos anos 60…; como
homenagem à cena final de “Bonnie and Clyde”, Allen chegou a filmar um final
diferente para este filme, no qual Virgil era apanhado numa emboscada e
fuzilado, como no filme de Arthur Penn, cena esta que foi abandonada na
remontagem de que atrás vos falei; mas, para os cinéfilos mais inveterados, a
cereja no topo do bolo das “homenagens” é Allen ter filmado uma cena no
interior do célebre Restaurante Ernie’s, em São Francisco, onde Hitchcock
também havia rodado duas cenas capitais em “Vertigo / A Mulher que Viveu Duas
Vezes”, hoje um verdadeiro “filme de culto”
6.Indiscutivelmente,
um dos motivos de atração deste filme é o tom de documentário no qual ele é
estruturado, e uma boa parte do seu humor reside no profundo contraste entre a
seriedade da locução e a comicidade das imagens que, em contraponto, nos são
mostradas. Allen tinha na memória, como vos disse atrás, os velhos
documentários do passado e levou esta homenagem a um tal ponto de
perfeccionismo que quem foi convidar para locutor foi Jackson Beck, a própria
voz dos documentários da Paramount dos anos 40. E essa mesma estrutura em
documentário, aqui e além acompanhada por imagens da época, acabou por ser um
esboço para “Zelig”, um dos grandes filmes de Allen realizado 14 anos depois, e
esse sim, inteiramente baseado em documentários de época;
Mais exemplos
haveria para salientar, mas creio que já vos macei demasiado…
E se comecei
falando-vos de Jerry Lewis, com ele irei terminar. É que este filme era para
ter sido realizado por Lewis, e não por Woody Allen. Suspeitando (e, pelos vistos,
com alguma razão…) da capacidade e da experiência deste como realizador, a
Produtora começou por dar o seu acordo ao filme, mas na condição de este ser
realizado por Lewis, e Allen concordou, embora com alguma relutância.
Seguiram-se
contactos entre Allen e Lewis, mas este acabou por declinar a oferta por não se
sentir muito convencido do projeto, em especial devido à estrutura do guião
demasiado baseada em sucessivos sketches, que Allen se recusava a
alterar significativamente. Esta recusa de Lewis deve ter sido recebida com
grande alívio por parte Allen, em cujo ego não cairia, certamente, muito bem o
facto de, num projeto tão pessoal, se ver dirigido pelo seu maior rival, com
quem poderia, fatalmente, entrar em conflito, como sucedeu com Peter Sellers no
“Casino Royale”.
Curiosamente,
nem Lewis nem Allen se referem a este facto nas respetivas autobiografias, mas
quem o relata com algum detalhe é John Baxter, na sua obra de referência sobre
o autor de “Manhattan” (4).
Disse-vos
atrás que, em minha opinião, este é um filme algo desequilibrado, com evidentes
problemas de ritmo na sua parte final, em contraste com a forma frenética como
o filme se inicia. Por exemplo, a cena dos prisioneiros acorrentados uns aos
outros, se no início tem a sua graça, a partir de determinada altura torna-se
algo penosa, tantas foram as vezes que foi repetida. E o mesmo se diga das
sucessivas cenas do bilhete com os supostos erros ortográficos no assalto ao
banco, que de tanto serem repetidas acabam por perder alguma eficácia.
Nada disso
altera, porém, o interesse que tem o visionamento deste filme histórico, o qual
contém, certamente, muitas cenas que poderíamos selecionar para uma antologia
do humor de Woody Allen: as impagáveis cenas em que intervêm os pais de Virgil,
disfarçados de Groucho Marx; as diversas cenas de assaltos e de fugas
fracassadas, com os gags das pistolas; a cena ao espelho com a toalha é
cintura; a teoria do psiquiatra em relação ao violoncelo; as hilariantes
tiradas de humor judaico…
Woody Allen
é, indiscutivelmente, um dos grandes realizadores do nosso tempo. Ao contrário
de outros grandes realizadores clássicos, de quem não chegámos a ser
contemporâneos, enquanto cinéfilos, com Allen tivemos a oportunidade de
acompanhar a construção de todo o edifício da sua Obra, tijolo após tijolo, e
julgo ser imperdível ver este momento inicial em que, timidamente, começou a
dar os primeiros passos.
Espero que
estejam de acordo comigo e se divirtam.
Sendo esta a
minha última intervenção, mais uma vez os meus agradecimentos a quem me
convidou e a quem teve a paciência de me ler e de me ouvir.
2. Desde
os primórdios da Indústria Cinematográfica era habitual os Estúdios e/ou os
produtores dos filmes realizarem, antes da sua estreia oficial, sessões prévias
de apresentação para uma audiência selecionada, a fim de testarem a reação do
público. Em função desta e dos inquéritos individuais lançados à assistência,
os filmes podiam ser modificados, por forma a colmatar as principais
insuficiências detetadas. No caso deste primeiro filme de Allen, foram
escolhidos como publico um grupo de soldados americanos em licença no país,
tendo o filme sido projetado com uma muito reduzida e suave banda sonora. A
reação da plateia foi péssima…
Será um
desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções,
fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer
especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.
23 de Abril
de 1974
Dizíamo-nos,
citando José Afonso, filhos da madrugada e sabíamos que não podíamos amar
serenamente porque muitos dos nossos amigos estavam na prisão, tentávamos o
possível e esse possível era sempre tão escasso que, por vezes, o desânimo
invadia os dias e as noites. Depois alguém começava: canta amigo canta,
vem cantar a nossa canção, tu sozinho não és nada, juntos temos o mundo na
mão, um outro, com um entusiasmo sereno, lembrava que há coisas que
não têm fim, a esperança num melhor, por exemplo, e a luta por conseguir esse
mundo.
Acreditar que
num qualquer tempo, um microfone falaria às 4 e tal…
Não falou às
4 e tal, falou antes, mas era o sinal para a madrugada por que tantos
esperaram.
SOB A
PRESIDÊNCIA do Prof. Doutro Marcelo Caetano, reuniu, hoje, em São Bento, o
Conselho de Ministros.
O Conselho ocupou-se largamente da conjuntura económica do País e da
necessidade de acompanhar a marcha da inflação, nos aspectos que não possam ser
totalmente travados, de modo a combater a especulação e a moderar quanto
possível a alta dos preços.
Iniciou também o estudo de providências sobre a situação do funcionalismo.
Os trabalhos prosseguirão sobre estas matérias em reuniões do Conselho de
Ministros para Assuntos Económicos, até estarem prontos os diplomas a aprovar.
FOI TORNADO PÚBLICO um aviso dirigido a todos os mancebos que se apresentem às
Juntas de Recrutamento Militar, no ano em curso de que devem fazê-lo
acompanhados dos documentos necessários e obrigatórios para a sua identificação
e regular funcionamento das Juntas, nomeadamente o bilhete de identidade, a
cédula de recenseamento, certificados de habilitações literárias e carteiras
profissionais ou sindicais.
O SERVIÇO de Informação Pública das Forças Armadas anuncia a morte de dez
militares: quatro na Guiné e três em Moçambique, em combates, e três “por
doença” em Angola.
É ADIADO para 15 de Maio, por falta de testemunhas, o julgamento de Maria
Helena Vidal, acusada de ter feito parte do comando que assaltou um avião da
TAP, em 1961, espalhando panfletos, em Lisboa e Porto, contra o regime.
EM ESPANHA começa a “Vuelta” com a presença de
Joaquim Agostinho mas sem o super-campeão Merckz.
OTELO SARAIVA DE CARVALHO, no seu livro “Alvorada em Abril”: «Se a gente perder? Vocês digam nos interrogatórios, quando forem presos,
que não têm nada a ver com isto. Que houve um major de artilharia chamado
Otelo, maluquinho da cabeça, que teimou em deitar o Governo a baixo e vos
convenceu a entrar nesta guerra. Digam que ele é o culpado de tudo.»
Pelo Decreto-Lei
nº 26.539 de 23 de Abril, durante a ditadura de Oliveira Salazar, é criada uma colónia penal para presos políticos e sociais no Tarrafal, na Ilha de Santiago,
no Arquipélago de Cabo Verde que ficou conhecido como o «Campo da Morte Lenta».
Totalizavam 152 os primeiros presos políticos que entraram no Tarrafal no dia
29 de Outubro de 1936.
Lia-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 26.539
assinado pelo presidente António Óscar de Fragosos Carmona:
«É
necessário dar execução imediata ao disposto nos decretos nº 23.203, de 6 de
Novembro de 1933, e 24.112, de 29 de Junho de 1934, que prevêem a instalação de
uma colónia penal para presos políticos e sociais no ultramar.
Depois de um reconhecimento
cuidadosamente feito por técnicos a diferentes ilhas do Arquipélago de cabo
Verde, chegou-se à conclusão de que o lugar do Tarrafal, da Ilha de Santiago,
reunia as condições necessárias à instalação desta colónia, sob o ponto de
vista higiénico, de vigilância e de recursos naturais de comunicações
indispensáveis ao seu bom funcionamento.»
Pelo Artº 3º
do Decreto, ficava-se a saber que a colónia terá instalações necessárias para
uma lotação de 500 presos.
Manuel dos
Reis, diretor do campo durante vários anos, recebia os prisioneiros políticos
dizendo «Quem vem para o Tarrafal vem para morrer!»
Todos nós que vivemos no Tarrafal, os
que morreram e os que ainda estão vivos, sempre pensámos, e muitas vezes o
dissemos uns para os outros, que uma vez derrubado o fascismo no nosso país,
todos os criminosos com responsabilidade na criação do Tarrafal e nos crimes
que aí se praticaram, seriam julgados em tribunais comuns e justamente
condenados. Lamentavelmente não tem acontecido assim.
Será um
desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias,
figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação
do dia, mês, ano em que aconteceram.
22 de Abril
de 1974
Os jornais
trazem nas suas primeiras páginas, fotografias do almoço íntimo que o chefe de
estado Almirante Américo Tomás ofereceu, ontem, no Palácio Nacional de Belém do
Chefe do Governo.
Sem
protocolo, revestido de cunho de cordialidade, num ambiente extraordinariamente
amistoso, escreveram os jornalistas. Não adiantaram os motivos do festim
mas, sabe-se por portas travessas que Tomás, com esta reunião, tentou conciliar
os ministros que, ouvia-se pelos corredores, andavam às turras, uns com saudades
de Salazar, outros por Marcelo andava tropeçar nos próprios passos.
Olha-se a
fotografia, publicada pelo ultra-fascista jornal Época, e vemo-los
descontraídos e sorridentes.
Desconheciam
ainda que almoçavam, todos juntos, pela última vez, tal como desconheciam que
poucos dias faltavam para deixarem de sorrir.
O pânico
haveria de tomar conta das suas excelsas e distintas pessoas.
O JORNAL
REPÚBLICA conseguiu, numa pequena notícia, dar conta que
quatrocentos democratas marcaram presença na homenagem a Óscar Lopes.
No mesmo
jornal, o jornalista e escritor Álvaro Guerra, encarregado pelos capitães da
ligação com a imprensa, no seu habitual Ponto Crítico, abordava
a meteorologia e, se pudéssemos ter decifrado as entrelinhas, teríamos ficado a
saber que o tempo ia mesmo mudar.
«A Primavera continua chuvosa, um resto
de invernia que se arrasta, retardando o sol aquém, de tantos sóis adiados, se
vai fartando e chegando ao Inverno da vida com um levíssimo e já frio raio de
luz teimando penetrar na floresta desencantada da memória.
Naturalistas, alegóricos, nostálgicos, vamos seguindo os caprichos do clima,
mitigando a ausência das palavras primaveris com a decifração de eternos
boletins meteorológicos.»
OTELO SARAIVA
DE CARVALHO comunica aos seus camaradas que tem pronto o Plano Geral
das Operações.
DINIZ DE
ALMEIDA, em Origens e Evolução do Movimento de Capitães, conta, que neste
dia, «Grândola» de José Afonso foi escolhida como canção-segunda-senha para saída,
em todo o país, dos regimentos afectos ao Movimento dos Capitães.
A canção foi
escolhida por Almada Contreiras que, mais tarde, justificará a escolha: «em
primeiro lugar, porque sou alentejano, depois porque gosto muito da canção.
Se fosse minhoto, provavelmente a senha seria um “vira”, não sei».