sábado, 26 de junho de 2010

MANUAL DE PINTURA E CALIGRAFIA




Manual de Pintura e Caligrafia

José Saramago
Capa: Luís Duran
Moraes Editores, Lisboa, Dezembro de 1976

Terra do Pecado, publicado em 1947, é o primeiro romance de José Saramago.

Sabe-se da rejeição que o autor lhe impôs, uma inexperiência vital, dirá mais tarde e, apenas em 1997, após múltiplas e variadas exigências, permitirá que faça parte da sua bibliografia.

Manual de Pintura e Caligrafia é, pois, o segundo romance de Saramago e, diga-se: passou completamente ao lado da crítica e do público leitor.

Saramaguiano que já era, encantou-me de imediato, e sempre o entendi como um livro para ser vigilantemente pensado.

Lido de um só fôlego, a ele voltei para lentamente o apreciar, tal como se faz com uma velha aguardente

Saramago considera-o o mais autobiográfico dos seus livros.

Ao título acrescentou: Ensaio de romance.

Baptista-Bastos não tem dúvidas em apontá-lo como absolutamente exemplar na História da Literatura Portuguesa do século XX.

Poderá entender-se que aquando do lançamento, Manual de Pintura e Caligrafia tenha passado despercebido. José Saramago já tinha livros publicados, um trabalho jornalístico viajando nas margens do anonimato, mas muito poucos o liam ou sabiam quem era.

Reeditado seis anos depois, já depois de Levantado do Chão e Memorial do Convento, acabou por ficar na sombra destes dois livros e a não merecer a atenção que lhe é devida.

Mas fiquem sabendo, se ainda não o leram, que é uma obra fascinante.

Sempre fico espantado diante da liberdade das mulheres. Olhamo-las como a seres subalternos, divertimo-nos com as suas futilidades, troçamos quando são desastradas, e cada uma delas é capaz de subitamente nos surpreender, ponde diante de nós extensíssimas campinas de liberdade, como se no rebaixo da sua servidão, de uma obediência que a si mesma parece buscar-se, levantassem as muralhas de uma independência agreste e sem limites. Diante desses muros, nós, que tudo julgávamos saber do ser menor que viemos domesticando ou achámos domesticado, ficamos de braços caídos, inábeis e assustados: o cãozinho de regaço que com tanta boa vontade se rebolava no chão, de costas, mostrando o ventre, põe-se de pé num salto, com os membros trémulos de ira, e os seus olhos são de repente alheios a nós, e fundos, vagos, ironicamente indiferentes. Quando os poetas românticos diziam (ou dizem ainda) que a mulher é uma esfinge, acertam, abençoados sejam. A mulher é a esfinge que teve de ser porque o homem se arrogou do senhorio da ciência, do tudo saber, do poder tudo. Mas é tanta a fatuidade do homem, que à mulher bastou levantar em silêncio os muros d sua recusa final, para que ele, deitado à sombra, como se deitado estivesse sob uma penumbra de pálpebras obedientes, pudesse dizer convicto: “Não há nada para além desta parede.”
Tremendo engano de que não acabamos de acordar.

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