segunda-feira, 26 de julho de 2010

CAIM


Caim

José Saramago
Editorial Caminho, Lisboa, Setembro de 2009

Depois da graça, do humor de “A Viagem do Elefente”, não era crível que Saramago voltasse a um tema polémico como o que desenvolve em “Caim”. 

Mas isso é não conhecer José Saramago, o agitador de ideias, o sadio provocador, o ateu emperdenido como gostava de se chamar:

”Desde há muitos anos que eu venho dizendo que a Bíblia tem umas quantas histórias mal contadas”.

Concretamente “Caim” tornou-se mais polémico, não propriamente pelo tema em si, mas por algumas afirmações que Saramago proferiu em Penafiel, aquando da apresentação do livro e que criaram, um acontecimento mediático, um pequeno vendaval, entre os suspeitos do costume, a maior parte nem o livro lera e sucederam-se as incompreensões, as resistências, ódios velhos.


Numa entrevista Saramago disse:

“Uma polémica que, no fundo, não tem grande sentido. Se não fosse a requintada sensibilidade da Igreja em certos casos - outros há em que não teve nenhuma - isto não teria acontecido. Tive a ingenuidade de supor que a Igreja Católica não se ia meter nisto, porque era o Antigo Testamento. Como digo, e eles não negam e as sondagens ou inquéritos confirmam, os católicos não lêem a Bíblia. Quando muito, lêem o Novo Testamento, e algum mais curioso, ou mais amante da beleza de textos, irá ler o Cântico dos Cânticos, os Salmos e pouco mais. Era o que eu pensava que ia acontecer e não se compreende que pessoas tão habituadas à diplomacia secreta, como é a da Igreja, saltem à arena mal o livro saiu, tomando como pretexto as declarações que fiz em Penafiel. Só que o que disse em Penafiel já o tinha dito antes, que [a Bíblia] não é livro recomendável às crianças. Mas isso não quer dizer nada, os protestantes da facção evangelista são educados na interpretação literal - se é literal não é interpretação, é aquilo que lá já está - e é por aí se regem.
O teólogo Hans Kung disse sobre isto uma frase que considero definitiva, que as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros. Só isto basta para acabar com isso de Deus. Mas há coisas muito mais idiotas, por exemplo: antes, na criação do Universo, Deus não fez nada. Depois, decidiu criar o Universo, não se sabe porquê, nem para quê. Fê-lo em seis dias, apenas seis dias. Descansou ao sétimo. Até hoje! Nunca mais fez nada! Isto tem algum sentido?”, perguntou.“Deus só existe na nossa cabeça, é o único lugar em que nós podemos confrontar-nos com a ideia de Deus. É isso que tenho feito, na parte que me toca."


“Caim” fica como a última grande polémica de José Saramago: 


“ O ser humano inventou Deus e depois escravizou-se a ele. Porque é que Deus recusou o sacrficio de Caim? Esta pergunta não tem resposta."

É também o último livro de José Saramago.

Como foi divulgado, logo após a sua morte, ficaram umas 20 ou 30 páginas de um romance que o autor estaria a escrever, sobre a violência da guerra, e que nem título ainda tinha.

Talvez numa qualquer arca possam existir papeis, cartas, alguma coisa que mereça a divulgação pública e que, até agora, se desconhece. 

Tanto quanto se pode sabe, José Saramago era um escritor disciplinado, organizado e que nada deixava ao acaso.

Vamos esperar pelo assentar da poeira.

“Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a Adão e Eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden, a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outro animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo.”

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