domingo, 4 de julho de 2010

LÍDIA, A LINGUAGEM DO CORPO



Depois de ter lido “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, o poeta e jornalista Pedro Alvim, escreveu um postal a José Saramago.

É um trabalho curiosíssimo, bem imaginado, e uma sincera prova de amizade e camaradagem. Pedro Alvim pega em algumas páginas de “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, serve-se do nome de Lídia, e constrói “Odes”.

“Lídia, a Linguagem do Corpo”, foi publicado no Suplemento Literário do “Diário de Lisboa” Infelizmente, o recorte não tem data, mas terá sido publicado logo após a saída do livro de José Saramago, últimos meses do ano de 1984.

Por achar interessante , deixe-o por aqui:

“Meu caro José Saramago:
Etérea era a Lídia de Ricardo reis. Uma ode de suma medida - e fria. No Hotel Bragança, e pela magia da tua palavra, pelo peso exacto da tua invenção, outra Lídia conheci. Humana de corpo – e senhora de uma linguagem quente, ora de tristezas, ora de arroubos. E tão de mãos, tão de pernas, tão de seios, tão de lábios nos lábios de Reis, tão de sexo no correr dos dias poucos, tão serva e dama, que me disse para mim: “Esta também merece odes”, E teu livro lendo, virgula a virgula, ora dobrando páginas, ora desdobrando-as, fácil me foi descobrir que em tua prosa, entre outras, odes havia à criada do Hotel Bragança. Arrumei-as, verso a verso e aqui tas ofereço. Que me perdoes o atrevimento, este desvelamento ao longo das páginas. Sabe também que encontrei o filho de Lídia, militante dos dias novos. “Olá” – disse-me. E cobrou-me as quotas que eu tinha em atraso.
Com um abraço
Pedro Alvim


ODE I

Aberta foi a porta deste quarto
em silêncio, fechada está
um vulto atravessa tenteando,
pára à beira da cama,
a mão de Ricardo avança
e encontra uma mão gelada,
puxou-a.
Lídia treme
só sabe dizer,
Tenho frio,
e le cala-se,
está a pensar se deve
ou não beijá-la na boca,
que triste
pensamento
(Pág. 99)


Ode II

Tinha o casaco e as calças,
também o colete,
cuidadosamente pendurados
no cabide
sem uma ruga,
é o que fazem amorosas mãos
(…)
ele poeta , ela
por acaso Lídia,
mas outra,
ainda assim afortunada,
porque a dos versos
nunca soube
que gemidos e suspiros
estes são,
não faz mais que estar
sentada à beira dos regatos, a ouvir dizer,
Sofro, Lídia,
do mesmo
destino
(pág. 108)


ODE III

Tens razão, não sei nada de ti,
apenas que vives aqui no hotel
e sais nos teus dias de folga,
que és solteira
se sem compromisso que se veja.
Para o acaso, chegou,
respondeu Lídia
com estas quatro palavras,
quatro palavras mínimas,
discretas,
que apertaram o coração
de Ricardo Reis,
é banal dizê-lo,
mas foi tal qual assim
Que ela as sentiu,
coração apertado,
provavelmente nem a mulher
se deu conta do que dissera,
só queria lastimar-se,
e de quê,
ou nem sequer
tanto,
apenas verificar um facto
indesmentível,
como se declarasse,
Olha,
está a chover.
(pág. 173)


ODE IV

Que é um bom marido
para ti ,
Não sei,
És difícil de contentar
Nem por isso,
basta-me o que tenho
agora,
estar aqui deitada,
sem nenhum futuro,
Hei-de ser sempre teu amigo,
Nunca sabemos
o dia de amanhã,
Então duvidas
de que serás sempre minha
amiga
Oh, eu, é outra
Coisa
(…)
Ricardo Reis apertou-a
contra si,
ela abraçou-se a ele,
a conversa aproximara-os
devagarinho
duma indefinível
comoção,
quase uma dor,
por isso foi
tão delicadamente feito
o que fizeram
depois…

(pág. 201)

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