sábado, 28 de abril de 2012

OLHAR AS CAPAS



Casa na Duna

Carlos de Oliveira
Prefácio: Mário Dionísio
Capa: João da Câmara Leme
Portugália Editora, Lisboa, Maio de 1964

Hilário encosta-se ao coreto. Quer saber quanto pesa a coragem. Uma situação nova para ele, que fugiu sempre a tudo, à vida aos próprios sonhos. Lá Custar, custa. Um, suor miúdo corre-lhe na espinha e gela-o. Treme a cada olhar que lhe deitam. Cerca-o a festa, o mundo rude dos bêbados, das fêmeas, do cio, caldeado num pobre temor religiosos. A ternura não existe de graça, é preciso consegui-la à força, magoar, bater. Mas valerá a pena? A primeira gota de abandono. Lentamente, o veneno encharca-o e o simples facto de viver transforma-se em repugnância física. Está nu diante de si mesmo. Escusa de fingir. E antes que o suor o petrifique ou o medo lhe dê a volta ao estômago e o faça vomitar, abala para casa.
As luzes do largo ocultas pelas árvores, o céu já sem estrelas, a madrugada ainda distante, rodeiam-no de treva. Apressa o passo, transpõe o portão. E nunca mais saberá como a água turva de que é efeito se perdeu no mar. Uma dor fulgurante de tém-no por segundos; e oscila, ajoelha, sem consciência de nada.
De manhã, os trabalhadores da quinta encontram-no ainda com a enxada que o matou enterrada de alto a baixo na cabeça.


Nota do editor:
Durante o mês de Abril, irei apresentando uma série de livros que me acompanharam durante os tempos da ditadura.
Livros que, por isto ou por aquilo, ajudaram a formar uma consciência cultural e política. A sua aparição não obedece a algum critério, e, naturalmente, muitos livros e autores irão ficar de fora. 

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