domingo, 27 de maio de 2012

OLHAR AS CAPAS


Photomaton &Vox

Herberto Helder
Capa de Manuel Rosa
Assírio & Alvim, Lisboa 1979

Às vezes as coisas desatam a crescer numa espécie de sentido ao contrário. Desenvolvem-se em dois planos, movem-se em lugares diferentes. Entre eles bate um coração, uma alma, um motor. Aqui é que estão a unidade e o sentido - o senso, o contra-senso.

Imaginemos uma planta com as raízes no ar e a flor debaixo da terra - mas raízes eficazes, e uma flor perfeitamente organizada. A máquina desta planta é um milagre de energia. Foi tocada pelo sopro da alegria criadora. Faz coisas simétricas, assimétricas - maravilhas circulatórias e respiratórias: estruturas vivas. Mas está de cabeça para baixo. Não se integra nas matemáticas gerais. Falha nas relações. É outro milagre - um rasgão, uma oposição, uma subversão: um clarão. O conjunto estremece, abalado por uma luz nova. Todas as coisas refluem então para este centro devorador, este aparelho centrípeto. O contra-senso é o senso.

Falo do cotidiano absolutamente real, realizado.

Vou contar uma história. Havia uma rapariga que era maior de um lado que de outro. Cortaram-lhe um bocado do lado maior: foi demais. ficou maior do lado que era primitivamente menor. Tornaram a cortar. Foram cortando e cortando. O objetivo era este: criar um ser normal. Não conseguiam. A rapariga acabou por desaparecer, de tão cortada nos dois lados. Só algumas pessoas compreenderam.

Não me venham com teorias, estou farto. Acontecimentos, seres, objetos, lugares. A coluna vertebral disto tudo. A posição vertical - eis o que me parece justo. Se se anda com a cabeça e se põe o chapéu nos pés, não é a coluna vertebral que tem culpa. Trata-se de uma fé antípoda. Porque o erro pode estar em andar com os pés e pôr o chapéu na cabeça. De qualquer maneira, é magnífico ver uma flor ter delicadeza debaixo da terra. Bem: pode tomar-se um espelho e colocá-lo em frente das coisas. Na melhor das hipóteses, onde era esquerdo fica direito, e vice-versa. Pode acontecer tudo negro noutros casos. Porque as coisas são negras. Dormimos ou estamos acordados conforme a escolha. Atenção. É uma espécie de espetáculo. Vem anunciado nos jornais. Não se inventou, apenas se tornou mais forte a pancada do martelo. Sim, na cabeça. Chama-se a isto malícia ou intenção.

Segue. Sempre. 

Sem comentários: