segunda-feira, 11 de junho de 2012

LIVROS ENTRE AZEITE, BACALHAU E VINHO A MARTELO


Edite Soeiro contou como foi a sua entrada para a Editora Ulisseia.
Hoje é a vez de Vitor Silva Tavares.
A transcrição pertence a uma longa e interessantíssima entrevista que Vitor Silva Tavares concedeu a Alexandra Lucas Coelho, e que foi publicada no Público de16 de Julho de 2007:
Andava assim em pardal, saltitando daqui para acolá, palmilhando Lisboa como hoje – sou pedestre –, quando aparece uma proposta que era nem mais nem menos que ir dirigir a editora Ulisseia.
A Ulisseia!, que era a editora que eu, enquanto leitor, na altura ainda com algum dinheirito para comprar livros, mais apreciava, com direcção do Figueiredo Magalhães, que ainda é vivo. Grande editor. Não me deve chupar nem à lei da bala, porque eu é que fui suceder-lhe, digamos. Mal sabe ele a admiração que tinha por ele, e mal sabe ele que ao suceder-lhe não tive outro propósito senão garantir àquela editora o mesmo nível cultural, artístico que o velho Figueiredo Magalhães tinha dado.
Ora o José Cardoso Pires estava ligado à Ulisseia, que era a produtora dessa publicação “sui generis”, espantosa que foi o “Almanaque”.
Quando chego à Ulisseia, meti condições que não dá para acreditar, porque eu não acreditava nada que de repente trocava os cem paus, ou os noventa paus, que me pagava o “Diário Popular” por uma colaboração, e de repente estava à frente, como director editorial, de uma editora como a Ulisseia. Era demais. Então disse: “Só entro se...”


Como é que essa hipótese apareceu?

O Figueiredo Magalhães tinha saído, a Ulisseia tinha ficado sem cabeça, e tinha-se arrastado um determinado período, dependendo de uma casa gráfica, a Casa Portuguesa, que executava os livros e atirava todo o passivo para a Ulisseia. Quem era o dono disso tudo? A Abel Pereira da Fonseca! Batatas, azeitinho, vinho a martelo! E alguém ligado à administração da Abel Pereira da Fonseca, conhecendo a irmã da Edite Soeiro [jornalista com quem VST trabalhara em Angola], perguntou: “Não haverá por aí alguém?”, e tal. E foi essa irmã, ou a própria Edite que disse: “Há um tipo que gosta muito de ler.” Disseram que eu tinha uma grande cultura literária, que também me interessava muito pelas artes plásticas. Naquela altura eu era um rapaz culto, e como tal capaz de estar à altura de – lá devem ter dito.
De modo que não acreditei [no convite para a direcção da Ulisseia] e fiz exigências]: separação completa da tal Casa Portuguesa, autonomia completa quer na Direcção Editorial quer na Direcção Administrativa, salário altíssimo... O convite foi em Outubro e já sabia que a editora estava tão mal que os donos não iam sequer pagar subsídio de Natal. Não senhor: “Não vai ninguém para a rua, senão não entro, e subsídio de Natal para toda a gente. E é pegar ou largar.”
A proposta devia ser de tal modo insólita, mesmo nessa altura, que o velho dono daquilo teve curiosidade em saber quem era o energúmeno. Vou ter com o homem, que seria dos mais ricos de Portugal...

O tal da Abel Pereira da Fonseca.

Sim senhora, de seu nome Manuel Correia — não sei se ainda é vivo —, que creio que nunca leu um livro, a não ser talvez o José Vilhena, e de teatro deve ter ido ver a Laura Alves. Homem já velho, de cabelo branco, acaba por ter comigo e com a Edite um tratamento como se fosse nosso pai ou nosso avô. Porque eu disse: “Mas eu lá de finanças, de organização, de coisas administrativas não percebo a ponta de um chavelho.” Para isso, estava a Edite, a sua disciplina, a sua capacidade de trabalho espantosa, e eu podia andar por aí. Também não me via como editor sentado, nem pensar. A Edite toda formiguinha e eu todo cigarra.
E assim foi.
O homem cumpriu totalmente. O único receio que ele tinha é que eu viesse a ser preso pela PIDE, dado que durante os dois, ou três ou quatro anos que lá estive nem faz ideia da quantidade de livros que publiquei e que a PIDE apreendeu.

O que é que publicou?

Ena pá! Fiz o gosto ao dedo. Fundei uma colecção muito bonita, ainda hoje gosto muito dela, “Poesia e Ensaio”. O Magalhães tinha a colecção dos sucessos literários, com os romances; tinha a colecção dos Documentos Sociológicos e Políticos; era a Ulisseia que publicava os livros da Pelikan. Mas não tinha Poesia e Ensaio. E até nessa colecção houve logo livros apreendidos. Desde “Feira Cabisbaixa” do Alexandre O’Neill a uma antologia da poesia portuguesa do pós-Guerra, até casos mais graves. Fui eu que publiquei os “Condenados da Terra”, do Frantz Fanon, e tínhamos a guerra colonial. Esse livro servia de bíblia aos guerrilheiros ditos terroristas.
Mas o Manuel Correia nunca demontrou qualquer problema pelos livros todos que eram retirados. Não lhe interessava. Se calhar a Ulisseia até seria uma desnatadeira, sei lá.
Uma desnatadeira?

Há certas editoras ligadas a empresas muito fortes noutros campos e onde as literaturas servem para desnatar lucros. Para dar prejuízo. Há editoras a que interessa dar prejuízo. Se houver fusão de empresas, uma grande empresa com lucros hiperbólicos pode sempre desnatar através de uma editora onde à partida já não se põem grandes expectativas. É uma questão de operações contabilísticas. Desnata-se, ou descai-se. E até se pode ganhar alguma coisa em sede de IRC. Não percebo muito de finanças mas é à volta disto.
Seria um tanto enigmático porque é que a Abel Pereira da Fonseca tão interessada em vender grão de bico, vinho, azeite e batatas do Val do Rio era tão indiferente ao sucesso ou insucesso económico da editora. E era. O que me punha completamente à vontade. Começo a publicar cá, por exemplo, os autores do “nouveau roman”, Nathalie Sarraute, Claude Simon, Robert Pinget, com “O Garoto” — se aquilo vendeu 20 exemplares deve ter sido um “best seller” do caraças. Ou quando começo a chamar os surrealistas portugueses. Quem é que os publicava? Ninguém. Sou eu que vou publicar o primeiro livro do Luiz Pacheco, “Crítica de Circunstância”. E trás, cai lá a PIDE, pumba, o livro é apreendido.

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