segunda-feira, 25 de junho de 2012

SARAMAGUEANDO



O ter publicado aqui uma carta de Jorge de Sena para José Saramago, leva-me a que junte algumas palavras que Saramago diz sobre Sena e que se podem encontrar na Longa Viagem que fez com João Céu e Silva:

«Eu conheci o Sena. Não muito bem, sem qualquer intimidade a não ser aquela que depois resultou de quando ele se foi de Portugal. Além de ser um grande tradutor, tinha uma característica raríssima – e eu não conheço outro caso -, é que a cada tradução que fazia acrescentava-lhe um estudo, o que dava ao editor essa enorme sorte de não se limitar ao que já era. Enquanto eu estava na Editorial Estúdios Cor correspondemo-nos por razões de trabalho e reencontrámo-nos quando veio a Lisboa depois de 1974 uma vez ou duas – uma por ocasião de um congresso de escritores em que casualmente ficámos sentados ao lado um do outro e conversámos – mas a partir daí os contactos romperam-se, não por qualquer motivo de ordem pessoal mas porque nós não publicámos mada mais dele. Digamos que as coisas ficaram por ali e por isso no que se refere ao aspecto pessoal da questão não posso considerar-me um amigo ou um grande amigo de Jorge de Sena.

Mas houve uma troca de correspondência desde 1961!

Sim, havia e eu confidenciei-lhe alguns problemas que tinha na altura, mas essas cartas estão aí e se algum dia forem publicadas ver-se-á até onde chegou em comunicação e, digamos, em intimidade. Agora, no que se refere à resposta mais directa à pergunta “e porquê o Jorge de Sena?”, como eu dizia atrás, Jorge de Sena não está esquecido pelos seus leitores. Não sei é como estamos em relação às novas gerações e dos mais novos com a obra dele. Alguns haverá aí – por obrigação ou por gosto espontâneo – que lêem ou leram o Jorge de Sena. Duvido que sejam muitos e eu não penso que o vamos fazer neste dia seja uma espécie de passe de mágica que vá transformar essa situação noutra completamente diferente, com Portugal inteiro correndo às livrarias à procura dos livros do Jorge de Sena, coisa que estrai muito bem se o fizessem, mas, enfim, não sejamos ingénuos. Esta grande admiração pessoal tem a ver por ele ser o tipo de pessoa que eu aprecio: frontal. Às vezes mesmo violento na expressão, basta recordar o célebre discurso da Guarda em que ele deita água gelada nas fervuras patrióticas (da Revolução de Abril) que se esperavam e que aconteceram realmente. Nessa comemoração disse: “Vocês estão a comemorar um país que não existe e eu venho aqui dizer-lhes que este país temos, pelo menos em minha opinião”. Isso não caíu bem no espírito das supostas massas pensantes, se o eram, desta terra. Sobretudo numa época em que o optimismo era obrigatório, pois se se tinha feito a revolução o que é queríamos mais? Já não tínhamos fascismo… Também não tínhamos democracia, mas pelo menos o céu estava limpo das nuvens de cinquenta anos. Porém, não se percebeu naquela altura, ou percebeu-se mal, ou alguém que o percebeu não o quis explicar ou não o soube explicar, que não se passa assim ligeiramente de uma situação de ditadura para uma situação democrática. Que não é em 24 horas, não foi sequer em 24 meses e já passaram os anos que já passaram e sabemos como é, não só em relação a Portugal, como em relação ao mundo a quase farsa trágica que é a utilização do conceito de democracia na retórica política quando vemos perfeitamente que a realidade desmente isso todos os dias. Mas há uma espécie de consenso com que estamos todos de acordo – ou pelo menos a maioria está de acordo – numa mentira. Porque poderá existir um dia uma democracia que se respeite a si mesma e que mereça o nome que tem, mas agora mesmo não existe. Basta ver o que se passa com toda essa questão da especulação do preço do petróleo que é apenas um efeito da economia que está a acontecer à sombra da democracia e que tem modos de autojustificação que acabam por convencer ou iludir as pessoas… E o Sena que, como bom cidadão que era – deveria estar contente com a revolução – e estava – mas teve a sensibilidade e o tacto para perceber que aquilo era uma espécie de capa brilhante e luzidia; que por trás dela o país continuava a ser o que era e é aquilo que sempre foi e que continua a ser só que com algumas mudanças. Então, este modo de ser do Jorge de Sena agrada-me! Evidentemente que se pode dizer que ele era imprudente ou demasiado expressivo no modo como classificava os factos e como punha o dedo nas feridas desta terra e que são bastantes. Se o Sena estivesse vivo, creio que hoje encontraria maia razões para indignar-se do que aquelas que com toda  a justiça encontrou nessa altura, porque nessa era simplesmente uma democracia que se anunciava, que não se sabia muito bem onde é que chegaria e também não tínhamos ideia do que era viver em democracia e, por isso, íamos andando – para recordar o António Machado – à espera de fazer o caminho. E hoje, depois de todo este caminho andado, não só as desilusões mas frustrações e as decepções parecem inseparáveis da chamada condição humana, porque sempre temos tendência para crer que agora é que é e depois não será. Foi este conjunto de razões que nos levou a pensar que a Fundação não tinha sido criada para enaltecer as minhas qualidades e virtudes – ad majorem gloria – mas para dizer e fazer qualquer coisa de útil social e culturalmente através de uma activ9idade pensada e com uma sequência que lhe permitisse tomar pé no conjunto das actividades culturais do país. Não para recuperar, porque as obras estão aí e, portanto, não o precisam, mas em alguns casos necessitam simplesmente que se faça alguma coisa para chamar a atenção, para dizer às pessoas “olhe lá, você tem muitas razões para estar distraído, tem preocupações na vida mas está aqui isto” e aquele que se apresentou foi de facto o Jorge de Sena.»


Legenda: pormenor da crítica de José Saramago ao livro Novas Andanças do Demónio de Jorge de Sena, pág.161 da Seara Nova nº 1460, Junho de 1967.

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