sexta-feira, 30 de agosto de 2013

OLHAR AS CAPAS


Livro de Crónicas

1º volume
António Lobo Antunes
Publicações Dom Quixote, Lisboa Novembro de 1998

Serei como aquela prima idosa surdíssima, outrora bonita, com uma enorme telefonia à cabeceira, a quem o enfermeiro que lhe dava as injecções para o reumático comentou
- Que lindo rádio que a senhora tem
e ela num suspiro, de nádegas ao léu à espera da seringa, orgulhosa e coquete
- Havia de o ter visto aqui há quarenta anos.
Devo estar a ficar velho. E no entanto, sem que me dê conta, ainda me acontece apalpar a algibeira à procura da fisga. Ainda gostava de ter um canivete de madrepérola com sete lâminas, saca-rolhas, tesoura, abre-latas e chave de parafusos. Ainda queria que o meu comprasse na feira de Nelas um espelhinho redondo com a fotografia de Yvonne de Carlo em fato de banho do outro lado. Ainda tenho vontade de escrever o meu nome depois de embaciar o vidro com o hálito. Ainda caminho pela borda do passeio sem pisar o intervalo das pedras. Ainda me apetecia que o meu avô me viesse fazer uma festa à cama. Ainda gosto de resolver os hieróglifos comprimidos dos Almanaques Bertrand do sótão organizados pela Sra. D. Maria Fernandes Costa e escrver nas soluções quando a pergunta é Grande Escritor Português Infelizmente Já Falecido, o nome do emérito poeta General Fernandes Costa. Pensando bem
(e digo isto ao espelho)
Não sou um senhor de idade que conserva o coração menino. Sou um menino cujo envelope se gastou.

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