segunda-feira, 11 de novembro de 2013

OLHAR AS CAPAS


Cadernos III

Albert Camus

Tradução: António Ramos Rosa
Capa: Infante do Carmo
Colecção Miniatura nº 168
Edição Livros do Brasil, Lisboa s/d

Outubro de 1946, 33 anos daqui a um mês.
A memória fraqueja-me de há um ano para cá. Incapacidade de fixar uma história contada – de lembrar trechos inteiros do passado, que, no entanto, foram bem vivos. Enquanto isto não melhora (se é que melhora), é evidente que deve notar aqui cada vez mais coisas, mesmo as pessoais. Porque afinal tudo se dispõe no mesmo plano um pouco confuso, o esquecimento ganha também o coração. As emoções tornam-se breves, desprovidas da longa ressonância que lhes dá a memória. A sensibilidade dos cães é assim.

Há que afirmar que como escritores traímos perante a História se não denunciarmos o que é para denunciar. A conspiração do silêncio é a nossa condenação aos olhos daqueles que hão-de vir depois de nós.

Porque se bebe? Porque na bebida tudo toma uma importância, tudo se dispõe segundo uma linha máxima. Conclusão: bebe-se por impotência e por condenação.

O velho mendigo a Eleanor Clark: «Não é que sejamos maus, mas perdemos a luz.»

B. Constant (profeta): «Para viver em repouso é necessário quase tanto trabalho como para governar o mundo.»

Romance: O homem que é apanhado pela polícia política porque não quis ter a maçada de se ocupar do passaporte. Sabia-o. E não o fez, etc…

Nietzshe diz: «Não pode haver Deus, pois se existisse um Eu não poderia resignar-me a não sê-lo eu próprio.»

Retirei-me do mundo não porque tivesse inimigos, mas porque tinha amigos. Não que eles não me fossem prestáveis como é habitual, mas julgavam-me melhor do que sou. É uam mentira que eu não posso suportar.

Amigo de C. «Morreremos aos quarenta mas de uma bala que metemos no coração aos vinte.»

«Não vivemos verdadeiramente senão algumas horas da nossa vida…»

Começa-se por crer na solidão e julga-se que é difícil. Mas a seguir escreve-se e cai-se acompanhado. Sabe-se então que o empreendimento é insensato e que a felicidade estava no início.

Tentei com todas as minhas forças, conhecendo as minhas fraquezas, ser um homem de moral. A moral mata.

«Ah! eu matar-me-ia se não soubesse que a própria morte não é um repouso e que no túmulo também nos espera uma terrível angústia.»

Os deveres da amizade ajudam a suportar os prazeres da sociedade.

Cultivar a memória, primeiro que tudo

Como viver sem algumas boas razões para desesperar!

Não se diz a quarta parte do que se sabe. Se não, tudo ruiria. Diz-se tão pouco, e já urram

O único esforço da minha vida, pois que o resto me foi dado, e generosamente /salvo a fortuna, a que sou indiferente): viver uma vida de homem normal. Este esforço desmedido de nada serviu. A pouco e pouco, em vez de colher cada vez melhores resultados no meu empreendimento vejo o abismo a aproximar-se.

«Ele dizia-lhe que o amor dos homens é assim, uma vontade, não uma graça, e que ele próprio tinha de ser conquistado. Ele jurava-lhe que isso não era o amor.»
«Perdera tudo, a té a solidão.»

Keats ainda. «Não há maior pecado do que crer que se é grande escritor. É verdade que um tal crime comporta um pesado castigo.

Chesterton. A justiça é um mistério, não uma ilusão.
«Obedecei», dizia Frederico da Prússia. Mas ao morrer: «Eu estou cansado de reinar sobre escravos.»

 L.G. – bastante bela, mas, como diz Stendhal, deixa um pouco a desejar quanto às ideias.

Antes pobre e livre que rico e subjugado. Bem entendido, os homens querem ser ricos e livres e é o que os leva algumas vezes a ser pobres e escravos.

Delacroix. «O que faz o homem de génio… não são as ideias novas, é essa ideia, de que o possui, de que tudo o que está dito não o está ainda bastante.»

Gide: Só o ateísmo pode pacificar o mundo hoje. (!)

Sim, tenho uma pátria: a língua francesa.

«A liberdade é um dom do mar.» Proudhon.

5 de Fevereiro (1951). Morrer sem ter deixado nada em ordem. Mas quem morre deixando tudo em ordem, a não ser?... Garantir, pelo menos, a paz daqueles que amámos… A si mesmo nada se deve, nem sequer, e muito menos ainda, uma morte serena.

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