terça-feira, 15 de abril de 2014

O DIA DAS SURPRESAS


Lidos em 1966, a esmagadora maioria dos Poemas Possíveis estão assinalados a lápis.
Naturalmente, um desses poemas é Ouvindo Beethoven.
Uma boa dezena de anos antes de Abril, Saramago, esperançadamente, sabe que, como disse Jorge de Sena, não hei-de morrer sem saber qual a cor da liberdade.
Num país cinzento, debaixo de uma ditadura que tudo fez para que a esperança do povo não pudesse soltar amarras, cerceando a vontade de quem se sentiu escravo e pela libertação fez luta diária, houve quem não respeitasse mistérios nem segredos.
Muitos, durante essa luta, acabaram por morrer, não souberam da cor da liberdade, mas uma outra canção lembra: até mortos vão a nosso lado.
Ouvindo Beethoven, José Saramago sabia que, num, num qualquer mês, de um qualquer ano, chegaria o Dia das Surpresas.
Deste poema, em 1973, Manuel Freire fez canção e assim alargou os horizontes da mensagem.

Venham leis e homens de balanças
Mandamentos d'aquém e d'além mundo
Venham ordens, decretos e vinganças
Desça em nós o juízo até ao fundo
Nos cruzamentos todos da cidade
A luz vermelha brilhe inquisidora
Risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos a vassoura
A quantas mãos existam peçam dedos
Para sujar nas fichas dos arquivos
Não respeitem mistérios nem segredos
Que é natural nos homens serem esquivos.
Ponham livros de ponto em toda a parte
Relógios a marcar a hora exacta
Não aceitem nem queiram outra arte
Que a prosa de registo, o verso-acta.
Mas quando nos julgarem bem seguros
Cercados de bastões e fortalezas
Hão-de ruir em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.

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