quarta-feira, 8 de abril de 2015

SARAMAGUEANDO


Pedaços apanhados numa releitura de As Intermitências da Morte:

Saberemos cada vez menos o que é um ser humano.
Do Livro das Previsões
(Pág. 9)

No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, por queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada.
(Pág. 13)

Factos são factos, e este, quer se queira, quer não, pertence à ordem dos incontornáveis. Não pode haver melhor prova dele que a imagem da própria morte que temos diante dos olhos, sentada numa cadeira e embrulhada no seu lençol, e tendo na orografia da sua óssea cara um ar de total desconcerto.
(Pág.142)

Como já dizia o velho ditado antigo, galinha do mato não quer capoeira, Em sentido figurado, portanto, a morte, anda no mato. Não tornará a cair na estupidez, ou na indesculpável fraqueza, de reprimir o que em si há de melhor, a sua ilimitada virtude expansiva, portanto não repetirá a penosa de se concentrar e manter no último limiar do visível, sem passar para o outro lado, como havia feito na noite passada, sabe deus com que custo, durante as horas que permaneceu em casa do músico.
(Pág. 172)

A morte, porém, que por dever de ofício tantas outras músicas havia escutado, com particular relevância para a marcha fúnebre do mesmo Chopin ou para o adagio assai da terceira sinfonia de Beethoven, teve pela primeira vez na sua longuíssima vida a percepção do que poderá chegar a ser uma perfeita convizinhança entre o que se diz e o modo por que se está dizendo.
(Pág. 177)

Não compreendo, Lembre-se para que lho explique um dia, Quando, Um dia, o dia, aquele a que sempre se chega, Não me assuste. A morte sorriu o seu lindo sorriso e perguntou, Falando francamente acha que tenho um aspecto que meta medo a alguém, Que ideia não foi isso que quis dizer, Então faça como eu, sorria e pende em coisas agradáveis.
(Pág. 193)

Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista perguntou, Quer que chame um táxi para a levar  ao hotel, e a mulher respondeu, Não ficarei contigo, e ofereceu-lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um fósforo, um fósforo humilde, ela que o poderia desfazer o papel com o olhar, reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém morreu.
(Pág. 213)

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