terça-feira, 12 de abril de 2016

OLHAR AS CAPAS


Fanga

Alves Redol

Capa: Fred Kradolfer
Portugália Editora, Lisboa, 1943

De inverno há um entretenimento na Golegã – ver a cheia nas Praias e medir pelo Dique dos Vinte se a água sobe ou desce. Não há trabalho e os homens vêm para o pontão falar da ruína daqueles dias, enquanto os rapazes chafurdam por todos os cantos, onde há lama e água.
O Tejo começa a engrossar, galga para os areais das margens vai crescendo e invade tudo. No plaino que vai da Baralha ao rio, não fica um palmo de terra de sementeira fora de água. Só a estrada lembra aos homens que ali foi caminho de gente. As hortas e os vinhedos desaparecem e tudo fica como um grande rio, no meio do qual se levantam as faias e os eucaliptos, os salgueiros e os choupos. A rama dos canaviais afunda-se e acaba-se o pasto para os animais e a lenha para os homens. A alverca só se conhece pelas árvores que a circundam, e mulher alguma se atreve a ir lavar a roupa para aqueles lados. A Chamusca e a Golegã parece que ficam suspensas no Tejo, tanto o rio lhes babuja as casas.
É quási todos os anos assim. Mas naquele ano foi a cheia maior de todas, pelo menos para a minha casa. 
De cima chegavam as notícias de sempre. Com as chuvas de Espanha, o Tejo vinha mesmo com cara de quem ia ferrar partida. Muito barrento, ruidosos, correndo mais depressa do que nunca, já começara a devastar campos na Barquinha e em Constança. Dos sítios, mais próximos das margens, começou a tirar-se tudo o que que se podia salvar. Abandonaram-se casas, mudaram-se palhas, passou-se gado para lugares mais altos. Os homens que vivem do deu braço já não se lamentavam, porque o costume repetido os habitua. A cheia faz parte da nossa vida. É uma desgraça igual a muitas outras, como a falta de trabalho ou pouca comida na malga.

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