sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

JARDIM À BEIRA-MORTE PLANTADO


Que ideia a sua de cuidar que eu andaria aqui embezerrado, a rilhar enfados e malquerenças! Que grande engano o seu, se o pensou. Os nossos arrufos passavam-se num plano a que se pode chamar «técnico», o qual plano nada tem que ver com o calor da boa e funda amizade que lhe consagro. Fica é entendido que quando o autor-Miguéis tiver qualquer motivo de queixa, por mais insignificante que seja ou pareça ser, rapa da portátil e põe ali, preto no branco, enquanto tiver de ser, os seus agravos. Cã estão os amigos-editores para os escutar e atender. E encerrado o incidente, passo ao restante.
Já cá tinha lido a denúncia miserável do miserável Anselmo. (*) Teria ficado edificado, se o não estivesse há muito quanto à função policial por este «escritor» exercida. Bem compreendo a vontade de voltar que essas coisas lhe estarão dando… Isto por cá está tão podre, meu Amigo, tão triste e tão mesquinhamente pobre! Agora já nem da fachada se cuida: como eu dizia há tempos em carta ao Jorge de Sena: «vive-se num jardim à beira-morte plantado…» em constante incerteza e insegurança, num temor que corrói tudo – a começar pelo futuro. Será que conseguiremos sobreviver? Como lugar geográfico, naturalmente, mas como povo? Que lugar ocuparemos no mundo daqui por cinco, dez anos? Põe-se a gente a imaginar, e o que imagina dá vontade de fugir.

Carta de José Saramago para José Rodrigues Miguéis, datada de 12 de Maio de 1961 em Correspondência.

(*) Trata-se de Manuel Anselmo e de um episódio relatado por Miguéis, em carta para Saramago, datada de 10 de Abril de 1961:

A casa onde moramos, aqui, vais ser finalmente demolida dentro não sei de que prazo, e temos agora a apoquentação duma mudança – com rendas ao dobro! (Era uma casa velha, vasta, de renda fixada por lei.) Basta isto para me desorganizar o trabalho. Foi uma das razões que cá me trouxeram, porque minha mulher, cidadã americana, tem de ter domicílio aqui estabelecido, se quiser residir em Portugal sem perder a naturalização USA – Não sei se sabe que o gatuno encartado Manuel Anselmo acaba de me denunciar (mais uma) no último dos seus Cadernos periódicos: reproduz uma notícia do Avante de 1941, extraída dum jornal americano, sobre um discurso que eu fiz aqui, nesse a ano a respeito da invasão da URSS pelos alemães. Falei ao lado de professores da Harvard e de líderes trabalhistas. Já se vê onde ele quer chegar – atingir o escritor através do homem… de há vinte anos. Estão-me a fazer a cama, e isto dá-me imensa vontade de voltar…

Legenda: fotografia tirada do Catálogo da Exposição comemorativa do centenário do nascimento de Miguéis, 

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