terça-feira, 28 de março de 2017

OLHAR AS CAPAS


Tenho Cinco Minutos para Contar uma História

Fernando Assis Pacheco
Prefácio: João Pacheco
Capa: V. Tavares
Tinta-da-China, Lisboa, Janeiro de 2017

Nem sempre calha eu ler estas crónicas como deve ser: com voz pousada, os fonemas bem soletrados. Sou um trapalhão. Mas não é da língua, é de mim, que chego ao microfone estafado da vida que levo.
O Português parece-me muito belo. Estarei a exagerar? Porque a verdade é que me ponho a reler Camões e fico deslumbrado. Releio um poeta vivo como Eugénio de Andrade e apercebo-me de que a língua que mamei possui virtualidades invulgares, voltas que são de uma viola sábia. Ou então os versos de Herberto Helder – a maravilha esplêndida, penso às vezes, o Português do dia a dia transfigurado. Quero lá saber dos franceses e dos ingleses e dos italianos e dos espanhóis castelhanos e dos alemães e dos russos e dos persas – bolas, a minha língua não tem parecença com outra nenhuma!
É em Português que eu me entendo enquanto for vivo. Tristes dos emigrantes forçados a usar a alheia linguagem! Deve subir-lhe à boca um travo bem amargo, bem azedo. Não é pelo pastel de bacalhau que eles regressam todos os anos, como as andorinhas. Não é pela bôla de carne. É por saudades do Português. Estou a dizer uma verdade maior do que um punho.
Já vivi longe de casa e doía-me. O meu interlocutor na cidade universitária de Heidelberg ninguém acredita mas era um surdo-mudo, o Heinz. Eu morava em casa da mãe dele, a Frau Schwarzbeck, numa rua esconsa chamada Vangerowstrasse. Chegou-se quase ao natal e o Heinz, por gestos, quis saber coisas de mim. Fui-lhe explicando o que me vinha à cabeça.
Os surdos-mudos são insaciáveis quando o parceiro mostra simpatia. Às tantas já discutíamos futebol, ele muito orgulhoso do FC Koln, eu muito ancho do Benfica, que por acaso nesse ano foi campeão europeu.
Entenda-se: falávamos por gestos, gestos alemães.
Se há um Prémio Nobel do Companheirismo acho que o mereci no Inverno de 1960.
O Heinz lá ficou em Heidelberg, pelas minhas contas deve ser agora um senhor surdo-mudo de quase 60 anos. A mãe, a Frau Schwarzbeck, morreu entretanto. Vivíamos perfeitamente «entrosados», conforme de diz no futebol. Ao almoço eu comia no restaurante universitário, ao jantar abancávamos os três diante da televisão. Despesas a meias, os Schwarzbeck e o Herr Pacheco de Portugal. Certo dia a minha mãe mandou um cachecol pelo correio para o Heinz. Havia de ver-se a extenuante alegria do surdo-mudo! Tive de ir passear com ele, que não me largava enquanto o não exibisse na Hauptstrasse de lã ao pescoço.
Uma noite agarrei nuns brasileiros e prantei-os em casa dos Schwarzbeck. Um paulista tocava sambas em caixas de fósforos, o de Gôânia assobiava. Eu limitava-me a bater com o pé, e já era forte invenção do coimbrinha. Tanto bastou para a mãe alemã e o filho surdo-mudo alemão se renderem aos nossos talentos. Mas como diabo o Heinz tereia gostado? Se calhar gostou pela cena: a casa invadida, os copos sujos, a deambulação eléctrica dos meus amigos brasileiros da copa para a cozinha, da cozinha para a marquise, da marquise para a casa de banho e vice-versa. Garanto que o Heinz estava atordoado – e feliz. Disse-mo depois, por gestos.
Mas é pensando nesta gente toda, uma destas manhãs em que o bico do poema começa a morder, eu sozinho diante da folha branca, imagem clássica da criação literária, que escrevo umas linhas em louvor da língua portuguesa.
Não maço o ouvinte com mais nada. Aceite-me como sou:

A língua que mamei
é esta doce portuguesa
que me dizem fechada na boca mastigada
pela cárie dos pobres
e vai-se a ver cantante no meu beiço
como flauta de cana

vós chamareis-me o bronco da Europa
porém o jeito leve
na garganta o trilo modulado
quem há por essas raias eu pergunto
que melhor o conheça?

eu sou nesta canção igual que um pássaro
nem a crítica aceito
do latim vulgar estropeado
por um fundo ibérico malsão

cá vou dizendo tudo sobretudo
a alegria estes espantos

com o que tenho à mão, o coração  

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