terça-feira, 4 de abril de 2017

BOAS INTENÇÕES QUE NÃO ESCREVEM BONS ROMANCES


Em carta, datada de 31 de Outubro de 1964, Eugénio de Andrade, que fazia parte do júri que atribuíu a Sophia de Mello Breyner Andresen, pelo seu «Livro Sexto» em detrimento de «Metamorfoses» de Jorge de Sena, o Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores, escreve a Jorge de Sena:

«Quebro um longo silêncio (os motivos são tantos… sem que nenhum tenha a ver consigo) para lhe agradecer, tão tarde!, o seu belo, muito belo livro. Provavelmente já saberá que este foi por mim chamado ao último Prémio de Poesia da Sociedade de Escritores e que esteve à beira de o ganhar. Eu e o Padre Manuel Antunes votámos nele, por esta ordem. Havia então dois votos para o livro de Sophia, e coube ao representante da Sociedade desempatar. Mas o próprio voto de desempate foi dado após longa perplexidade, fique isto dito em abono do Pinheiro Torres. Conto-lhe isto mais para lhe mostrar quanto gostei do seu livro que por qualquer outra razão.»

Jorge de Sena responde em carta de 7 de Novembro de 1964:

«No meio de tudo isto, às vezes, com a correspondência em desordem, pensei em escrever-lhe. Mas, depois que soube ser V. membro do júri do prémio, sentia-me constrangido e, após o que, perdoe-me que lhe diga, considero um escândalo, fiquei à espera, mais constrangido ainda, que me escrevesse Você. O que finalmente aconteceu. Eu explico a razão de empregar a palavra «escândalo». Sabe V. que sou velho amigo da Sophia, a quem quero muito bem, e que sou das pessoas que a estimavam e admiravam, ainda quando todos ou quase todos a consideravam uma cabotina aristocrática, pela qual os neo-relistas não podiam nem roçar-se. Acho que ela é um dos mais importantes poetas portugueses do nosso tempo. Mas acontece que se premiavam livros e não pessoas. E das duas uma, se se premiavam pessoas, a minha obra, queiram-no ou não, é mais importante e mais influente que a dela; se se premiavam livros, o meu é um dos maiores livros que neste século se escreveram em português, mesmo que a obra de Sophia fosse mais influente que a minha. Isto não tem qualquer saída que não seja o ódio coligado contra mim, que é velho, a fúria dos comunistas que, por seus chantagistas que nem comunistas são, dominam tudo aí, e a minoria em que os meus fiéis sempre ficarão perante tudo isso. Tudo o mais são as boas intenções com que, segundo o Gide, não se escrevem bons romances. E não me fale desse Pinheiro Torres, que considero um dos muitos Margaridos que arrastam a cauda por essas ruas lusas e outros lugares menos públicos.»

Jorge de sena/Eugénio de Andrade em Correspondência.

Legenda: a capa do Livro Sexto é tirada do site da Biblioteca Nacional.

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