quinta-feira, 25 de maio de 2017

A SEGUNDA VEZ QUE ME ROUBA UM PRÉMIO


Carta de Jorge de Sena, datada de 4 de Maio de 1969, para Eugénio de Andrade:

Fisicamente e espiritualmente, estes meses têm sido muito difíceis para mim. Sofro terrivelmente de saudades da Europa, maiores e piores do que as que viera sentindo nestes dez anos de ausência, e isso paralelamente coincidindo com um período de dissensões e canalhices no meu Departamento, com a mediocridade mais triunfante do que nunca (em grande parte resultado da minha ausência de seis meses, em que aproveitaram para retomar posições e ascendência). E coincidindo também com uma vaga de direitismo repressivo na América, capaz de dar a volta ao estômago mais indiferente (e, ao mesmo tempo, vejo as esquerdas repetindo estupidamente todos os erros e provocações que, no Brasil, culminaram na revolução militar com o aplauso da média burguesia que hoje aperta o cinto). Além disto porque, porque, vindo exausto e enfraquecido, mergulhei num trabalho insano, os meus nervos estão à flor da pele, e a minha irritabilidade que, na maior parte dos casos faço por engolir (uma das artes das Américas é refinada: levar a pessoa a explodir, para ser ela quem tem a culpa… - e nisto os Estados Unidos são, no convívio, tão canalhas como o Brasil) não podia ser mais dolorosa e sensível. Tudo isto foi coroado com uma coisa em que não tinha fé, mas alguma esperança, até pelo desafogo económico que me traria momentaneamente, e que guardarás para ti, se não é coisa sabida à boca pequena: eu era o candidato do Diário de Notícias para o magno prémio que foi para o Torga (por sinal, é a segunda vez que este diabo me rouba um prémio a que não concorria pessoalmente). E se o não ganhei agora, depois de toda a promoção propagandística que me rodeou, é evidente que o não ganharei nunca.



Legenda: página do Diário Volume XI em que Miguel Torga «justifica» ter aceite o Prémio Diário de Notícias que, segundo Sena, lhe estaria destinado e lhe traria algum desafogo económico.

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