quarta-feira, 10 de maio de 2017

A TERRA É O PROVÁVEL PARAÍSO PERDIDO


Na hora da sua morte, encontrar um texto do Bastos para aqui colocar, teria que ser da Cidade Diária e, mais concretamente, este Então que é isso, ó Vitinha?!

O Helder Pinho andava sempre com o livro debaixo do braço, um livro todo riscado, com as margens cheia de ideias e comentários e chegou a ter de cor este Vitinha e uma outra crónica Sobre Domingo,ele que vivia perto do rio, na Rua da Manutenção, junto a Xabregas e sabia da ronca dos barcos no Tejo em noites de nevoeiro, e sempre que a malta se juntava, recitava:

Ao domingo entendemos que somos feitos de muitas almas, que dissemos «sim» à inutilidade aparente das coisas e às coisas definitivamente inúteis, que não escolhemos o nosso modo de existir, ele aconteceu e assim terá de ser até à soma final dos dias, que vivemos punidos, unidos, solitários, mas sempre e sobretudo com os outros – o que será a avulsa dor da nossa glória.

Os mestres encontravam-se pela noite, num qualquer bar entre Bairro Alto e o Largo da Trindade. O Eduardo Valente da Fonseca, que, a qualquer hora do dia, da noite, vagabundeava entre a redação do República e os tascos e bares em redor, acabava sempre por dizer onde estava o Bastos. Normalmente o poiso certo poiso era o Expresso Bar. Ali no Largo da Trindade.

Bebíamos e falávamos na noite, tal como escreveu o BB numa outra volta que até mete o Manuel da Fonseca.

Ou como escreveu o Ângelo Granja, numa saudação, publicada no Diário Popular, a Capitão de Médio Curso, livro do Bastos de 1978:

Precisamos falar, capitão. se trouxeres contigo o Baptista-Bastos, ficaremos, como dirá o teu armador, à bebida e à conversa, falando, se calhar. De jornais e jornalistas, de mulheres e amor, de vinho e bebedeiras, e, isso sem falta, de livros e escritores. Precisamos falar, capitão, porque homem calado não faz viagem, é como os barcos de qualquer curso, logo sem curso, emergindo destroços num mar de palha, por aí qualquer.

Tudo isto, ainda a faltar algum tempo para o Bastos desatar a perguntar: onde é que estavas no 25 de Abril?

O Bastos dizia: Sou louco. Toda a gente diz que sou louco. É a minha felicidade. Muitas vezes que as pessoas consideram loucura é uma busca desesperada de sinceridade.

Pelo Outono de 1995, numa entrevista à revista Ler, mostrou-se cansado das mesmas conversas de bares. Ele envelhecera. Os outros também.

Sempre fui um homem de bares, de tertúlias, de grupos de amigos. Sempre fui um homem de beber, fiz estas coisas de uma forma excessiva: beber excessivamente, amar excessivamente, ainda hoje faço isso. Na bebida tive de cortar um bocado…

Gosto muito desta crónica do Baptista-Bastos, mesmo muito.

Numa das últimas vezes que estive com o Helder Pinho, sempre a mudar de amores, de casas, desprendido de tudo e mais alguma coisa, ainda lhe perguntei se não me queria vender o seu exemplar anotado da Cidade Diária. Respondeu-me que já não sabia por onde o livro ficara. E se ainda o tivesse, não mo vendia, dava-mo.

O Helder era como o Bastos: fazia tudo excessivamente e por um Agosto quente do ano de 2003, o coração disse-lhe que já não aguentava mais.

As cinzas foram lançadas ao Tejo para que ele pudesse continuar a ouvir a ronca dos barcos do Tejo, em noites de nevoeiro, tal como contava o Bastos, coisas que sugerem a vontade do sossego e da paz.

Legenda: o título é de um poema do Lorca que o BB, amiúde, citava, e o recorte é uma notícia do Expresso de 23 de Março de 1988.

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