domingo, 27 de agosto de 2017

AS COISAS QUE DESEJAMOS NUNCA ACONTECEM


Mário-Henrique deixou S. Domingos. Esta carta, datada de 31 de Agosto de 1961, já foi escrita em Carcavelos. Recebera carta de Maria Isabel, encantada com Londres, de onde lhe escrevera, mais do que com Paris.

Gostaria imenso de estar aí consigo. Londres e uma companhia exacta são duas coisas que não se conseguem senão muito dificilmente. Gostaria de ir consigo comer uns horríveis ovos com presunto no Lyon’s Corner de Regent Street, gostaria de a levar ao pequeno restaurante chinês perto de Picadilly (não me lembro agora do nome da rua), tão barato e tão pessoal, onde nós nos sentimos mesmo nós; ou então irmos provar uma “pizza” na "pizzaria” onde a velha italiana tinha a mania de me fazer festas na cabeça. Enfim, gostaria de estar a sentir Londres consigo. Talvez pudesse contar-lhe só com os olhos o que é a Londres das pessoas, e não a tal do turismo. Seria de facto “sensacional”, como você muito “highlifement” afirma na sua carta. Mas, cara Mª Isabel, as coisas que desejamos nunca acontecem ou, quando acontecem, é tão raramente que até parece que não aconteceram. Assim, tenho que ficar aqui… até não ter.
Cara Mª Isabel, diz-me você na sua carta que os seus amigos têm uma casa tão bonita como a minha. Vénia agradecida pelo seu comentário, é o meu gesto nesta altura. Simplesmente, a minha casa já não tem nada daquilo que você conheceu uns dias atrás. Está praticamente perdida. Passo a explicar: como lhe disse, deixo-a aqui, para que a Dietlinde faça o que lhe apetecer, pois já não tenho mais capacidade para tentar salvar qualquer coisa. Simplesmente, três coisas desapareceram temporariamente: os livros, as pinturas, e esculturas e os discos. Passo a explicar: os livros vão ser entregues, como empréstimo, à Biblioteca Operária de que eu fui um dos directores e organizadores há alguns anos. Tem este acto a sua justificação: a minha “estimada esposa” nunca se interessou, nem de longe, pelos livros. Apenas dizia que juntavam pó, etc. Assim, e como podem ser úteis a gente que de facto se interessa pelo que neles há, aí vão eles de empréstimo. Claro que todos os livros alemães e ingleses que eu lhe ofereci (e até bastantes que já eram meus antes do inefável casamento) aqui ficam.
Quanto ás 2Obras de arte”, seguem em viagem de recreio pela Europa latina (Espanha, França, Itália) integradas, também única e simplesmente como empréstimo, numa exposição itinerante que “companheiros” velhos estão preparando. Assim se mostrará a gentes dessas terras bárbaras que cá também se sabe alguma coisa. Cá em casa fica o quadro pintado por mim que está na casa de jantar e o crucifixo que está no quarto. No lado da minha virginal esposa. Disse-me ela, numa última carta, que queria isto e eu isto deixo ficar. Bem.

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos.

Nota do editor: amanhã será transcrita a parte final desta carta do Homem do Gin para a advogada Maria Isabel.

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