sábado, 9 de setembro de 2017

OLHAR AS CAPAS


2 Textos à Pressão

Vitor Silva Tavares
Poster-Hors-Texte: Carlos Ferreiro
Contraponto Editora, Lisboa s/d

Ferreiro é lisboeta, de 42. A sua crónica (retrato do artista quando jovem cão, por causa da moral) engloba o pé-descalço, quartos interiores subalugados por negros embarcadiços das carreiras da América ( ou o sonho desde logo a viajar, insólito, exótico), as ruas do Vale Escuro, de Xabregas, do Poço do Bispo (as ruas e o Tejo próximo e o gosto de peixe frito e as escanzelada malta do berlinde – fecundo universo da infância que bem guardado nunca mais se esquece), a primária na Calçada das Lajes, o primeiro emprego (marçano de fanqueiro, aos 14) e a fulcral experiência determinante: dois anos no Cais da Fundição como aprendiz de serralheiro.
Estão a ver: o sabido menino pobre do Bairro Lopes ou da Vila Paulo, passados já os dias breves da infância (da liberdade) descuidada, a ganhar 12$80 por dia entre operários de Alfama (submetido às partidas de aprendiz: alicates a crestar as mãos, martelos para desempenar borracha, etc.) e a encher os olhos de fuligens, dejectos industriais, chapas metálicas, tuboladuras, cantoneiras, rebites, maçaricos – a agressão. Qualquer bote no rio, gaivotas, pedaços de céu entre esquinas de ferro são a fuga possível. Não contando com as fitas do Cine-Oriente e os desenhecos à sucapa, com a esquerda.
Agora sim: mais por determinação («Fazei mais o que souberdes») que por acidente, entra a António Arroio na crónica, começa a aventura (o risco, a sorte) da vocação própria, entendida (ainda e sempre) como trabalho, isto é, sem os voluntários, complexados martírios dos diletantes. Porque Ferreiro não sabe nada da Arte, não se ilustrou em cafés e compêndios, não aspira ao catálogo em couché, antes ao pão e à alegria de estar certo. Temo-lo, na sequência, junto de amigos, em ateliers gráficos, no Parque Mayer ajudando a cenografia, trabalhando em publicidade, despedindo-se de ordenados certos para seguir servir gloriosos malucos das máquinas de cinema (Fernando Lopes, o da «Abelha». João César Monteiro, o dos «Sapatos de Defunto, etc.), fazendo biscates, ao sabor do que vier, no justo.
Quando pica A Mosca, os bonecos de Ferreiro estão na rua a dez tostões (hoje a quinze), circulam nos eléctricos e autocarros, vão ao encontro da imaginação das pessoas, vivem e morrem quase instantaneamente, podemos encontra-los a embrulhar azeitonas, pevides ou castanhas. À margem dos templos, fora das promoções mundanas, cumprem sua função – em directo.
Eis um caso raro de coerência entre um artista (leia-se: um operário) e o destino social do seu trabalho.

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