sexta-feira, 13 de outubro de 2017

OLHAR AS CAPAS


Café Central

Álvaro Guerra
Capa: João Segurado
Edições O Jornal, Lisboa, 1984

Firmino Fontes morreu na tarde do primeiro domingo da Primavera de 1956, sem tomar conhecimento do relatório Krutchev, apresentado um mês antes ao XX Congresso  do Partido Comunista da União Soviética. Apagou-se aos 79 anos, sentado numa cadeira de palha, à porta do rés-do-chão onde sempre vivera, com os últimos raios de um sol ainda pálido. Vestia o fato de ganga dos domingos. O dr. Sales, chamado a constatar o óbito, atribuiu o passamento a congestão provocada por um copo de água fresca bebido depois da dobrada do almoço.
Não se sabe se o combativo serralheiro teria resistido à notícia de que Estaline dera muito maus passos na «construção do socialismo» e que os seus antigos pares o apresentavam agora como um sinistro tirano com as mãos sujas de sangue. Admite quem o conheceu que isso não seria suficiente para derrubar aquela fortaleza vila-velhense do amanhã radioso. A julgar pelos camaradas que cá ficaram é bem provável que digerisse a pretensa desestalinização com muito mais facilidade que a fatal dobrada.
Foi enterrado com todas as honras que a polícia permitiu, o emblema da foice e martelo na lapela do casaco de ganga. E acompanharam-no à última morada todos os camaradas cuja presença em Vila Velha não acarretava riscos excessivos.

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