quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

OLHAR AS CAPAS


O Relógio Falante

Frank Gruber
Tradução: Fernando de Castro Ferro
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 81
Livros do Brasil, Lisboa s/d

O velho Simon Quisenberry ia morrer. Não passava dos setenta e quatro anosmas o seu coração estava demasiadamente cansado, e uns dois anos atrás o dr. Wykagl dissera-lhe que tinha apenas seis meses de vida. Portanto enganara o médico por dezoito meses.
Não teria outro mês de vida. O velho Simon sabia-o, e continuava sentado na sua cadeira de rodas a ouvir o tic-tac dos relógios à medida que estes iam contando os poucos momentos que lhe restavam. Tinha mil relógios e todos lhe contavam a mesma história. Cada tic um segundo, sessenta tics um minuto, mil tics um milhar de segundos… Não. Mil tics não representavam mais de um segundo.
Simon olhou os relógios com uma expressão preocupada. Estavam a complicar-lhe a vida. Malditos relógios. Tinha-lhes dedicado toda a sua existência e agora, no fim, estavam a atraiçoá-lo. Estavam a apressar a sua vida, o seu fim – depressa, sem parar, demasiado cedo.

EU, SEM PAI, NEM MÃE...


Eu, sem pai, nem mãe, aqui presente,
declaro hirsuto que não temi de mais
quando, mais doído que doente,
não me levaram de casa de meus pais
por não os ter, nem casa, nem menino
ou moço ser. Corri comigo,
e pardacento, alvar e asinino,
fui para o campo a mordiscar o perigo.

Pedro Tamen em Tábua das Matérias

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO



João Varela Gomes morreu ontem. O 25 de abril deve-lhe muito. E eu devo muito ao 25 de abril.

Francisco Seixas da Costa em Duas ou Três Coisas

DESEJOS


A verdadeira solidão, isto é, aquela que faz sofrer, traz consigo o desejo de matar.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

Legenda. Fotografia do New York Times

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(Olho par ao fogo. A Rosalia pergunta-me: «em que pensas?» «Em nada» - respondo. – Em boa verdade, tento reduzir a cinzas  Pensamentos de desgosto. Alguns amigos estão presos por terem entrado na revolução falhada de Beja.)

O Sol às vezes adormece na Lua,
outras, suicida-se nos poços,
deita-se na hulha
das noites enterradas
onde o fogo dorme o seu sono
de cama nocturna.

Mas de quando em quando
levanta-se  estremunhado,
acorda nas árvores,
enlouquece no sangue das lareiras
dos tijolos de breda.
E então é dançar
atado a uma labareda.

José Gomes Ferreira em Poesia VI

JOÃO VARELA GOMES (1924-2013)



«A minha mãe gostava muito dele. Eu costumava dizer que se ele tem vindo uma geração antes… tinha casado era com a minha porque eles gostavam, de facto, muito um do outro. Aquele aspecto saudável, sólido que ele tem… quer dizer, carácter… Há um determinado número de qualidades fora de série que a minha mãe sentiu logo. É um homem, não é um garoto, não é um fedelho, é gente… É gente. Pode-se gostar mais ou gostar menos, mas que é gente, é gente, e tem aquelas qualidades fundamentais que o acompanharam toda a vida.»

Maria Eugénia Varela Gomes em Contra Ventos e Marés.

OLHAR AS CAPAS


A Reliquia

Eça de Queiroz
Livraria Chardon de Lélo & Irmão. Lda
Porto, 1929


Mas de repente assaltou-me uma áspera inquietação… E se realmente uma virtude transcendente circulasse nas fibras d’aquelle tronco? E se a titi começasse a melhorara do fígado, a reverdecer, mal eu instalasse no seu oratório, entre lumes e flôres, um d’esses galhos  erriçados de espinhos? Ó misero logro! Era eu pois que lhe levava nesciamente o principio milagrosos da Saude, e a tornava rija, indestructivel, ininterravel, com os contos de G. Godinho firmes na mão avara! Eu! Eu que só começaria a viver – quando ella começasse a morrer!

TOMA LÁ CINCO!


Encolhes os ombros, mas o tempo passa...
Ai, afinal, rapaz, o tempo passa!


Um dente que estava são e agora não,
Um cabelo que ainda ontem preto era,
Dentro do peito um outro, sempre mais velho coração,
E na cara uma ruga que não espera, que não espera..


No andar de cima, uma nova criança
Vai bater no teu crânio os pequeninos pés.
Mas deixa lá, rapaz, tem esperança:
Este ano talvez venhas a ser o que não és...


Talvez sejas de enredos fácil presa,
Eterno marido, amante de um só dia...
Com clorofila ficam os teus dentes que é uma beleza!
Mas não rias, rapaz, que o ano só agora principia...

Talvez lances de amor um foguetão sincero
Para algum coração a milhões de anos-dor
Ou desesperado te resolvas por um mero
Tiro na boca, mas de alcance maior...

Grande asneira, rapaz, grande asneira seria
Errar a vida e não errar a pontaria...

Talvez te deixes por uma vez de fitas,
De versos de mau hálito e mau sestro,
E acalmes nas feias o ardor pelas bonitas
(Como mulheres são mais fiéis, de resto...)

Alexandre O’ Neill em No Reino da Dinamarca

Legenda: Imagem Shorpy

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Apodrecem restos de alegria no fundo das garrafas.

Eduardo Guerra Carneiro em Algumas Palavras

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MAS FINGIA QUE NÃO PERCEBIA....


A páginas 364 das suas Memórias, Rómulo de Carvalho começa a contar aos seus tetranetos que, nos começos do ano de 1996, «lá mais para o fim do ano, em Novembro, completo os noventa, idade muito razoável para dar por terminada esta amarga experiência de existir», deu entrada no Hospital de Santa Maria.
D. Olga, sua calista, corria o mês de Janeiro, falou-lhe que tinha os pés inchados, e também as pernas. Passou-se Fevereiro, e no início de Março, «apareci com muita tosse e expectoração com sinais de sangue. Eu próprio me sentia fraco, no caminhar e no respirara, mas fingia que não percebia».
A mulher, Natália Nunes, falou com o filho que apareceu em casa com um médico das suas relações que o observou.

Eu estava sentado na minha cama, de pijama e chinelos, indiferente ao que se passava. O médico observou-me, auscultou-me minuciosamente, voltou a auscultar-me e disse, com voz velada mas segura, que eu tinha de r de imediato para o hospital.
(…)
Entrei no hospital no dia 6 e saí no dia 27. Estive internado vinte e um dias.
Imaginarão vocês, meus queridos tetranetos, o que seja estar vinte e um dias, de roupão, pijama e chinelos, à noite estendido na cama, de dia sentado num cadeirão a um canto do quarto, a olhar para o tecto, para o chão e as paredes, com uma agulha permanentemente espetada numa veia, agulha essa ajustada ao termo de um tubo de borracha que saía de um recipiente cilíndrico de vidro fixado no alto de um suporte metálico com três pés na base para assentar no chão. Para onde eu ia, ia aquilo tudo comigo.
(…)
Soube depois que durante os primeiros quatro ou cinco dias em que estive hospitalizado corri perigo de morte.
(…)
O quarto tinha um lavatório de parede onde a torneira da água fria não vedava bem e a água sempre a correr em fio. É claro que a direcção do hospital não sabe disso porque, se soubesse, mandava arranjar a torneira.
(…)
Quanto à comida, meus queridos tetranetos, mais ou menos sempre a mesma, mas quando era diferente tinha o mesmo gosto. Era comida fabricada e fornecida por uma empresa. Eu como sempre muito pouco, por falta de apetite e por a comida ser má.
(…)
E aqui estou. Não saio à rua porque me sinto fraco. Só acompanhado, e já o tenho feito, sob a protecção da vossa tetraavó Natália, É como quem vai passear o cão com a diferença de que o cão tem de ser passeado todos os dias, e eu só de vez em quando.
E como estou? Menos mal. Da grave moléstia que tive suponho que estou bem mas, do que padeço permanentemente, é das consequências da minha diverticulose intestinal, e suponho que essa virá a ser a causa do meu fim. Pois que venha esse fim, mas com o menos sofrimento possível. Este é que temo; não aquele.


Rómulo de Carvalho em Memórias 

NA ESTRADA DE SINTRA


Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
Maleável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

Álvaro de Campos em Poesias

domingo, 25 de fevereiro de 2018

DE QUEM REGRESSA A CASA E GOSTA DE ESTAR NELA


Descalçou-se, mudou de roupa, enfiou uns sapatos leves, de interior, entreabriu uma das janelas, gesto de quem regressou a casa e gosta de estar nela, depois sentou-se na poltrona a descansar.

sábado, 24 de fevereiro de 2018

PASSOU-SE TUDO TÃO LONGE E TÃO DEPRESSA


Chegamos ao fim da viagem, iniciada em 27 de Setembro de 2017, que fomos fazendo sobre a Correspondência  entre Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena.
A última carta do livro é de Sophia.
Está datada de 1 de Julho de 1978, é endereçada a Mécia de Sousa, e refere a morte de Jorge De Sena, ocorrida a 4 de Junho:

Querida Mécia

Telefonei duas vezes sem a encontrar. Sentia-me angustiada demais e queria encontrar a sua voz. E não a tendo encontrado não tive coragem para as palavras abreviadas do telegrama.
Para além do desgosto e da saudade sinto um profundo acabrunhamento.
Do Jorge oiço o grande rio em cheio da sua poesia passando através do espaço e do tempo em que vivo.
Sei que dificilmente existirá alguém que seja seu igual. E não me consolo destes dezoito anos de ausência que poderiam ter sido dezoito anos de convívio, de encontros, conversas, riso comum, aflições e alegrias comunicadas.
Comecei por ser amiga do Jorge pela profunda admiração pela sua poesia. Depois descobri a sua lealdade, a sua simpatia, o seu calor humano, e uma grandeza humana que estava inscrita na grandeza da sua poesia.
Agora passou-se tudo tão longe e tão depressa. O Jorge era ainda novo e em plena força de criação e de combate. Há uma violência difícil de aceitar.

O livro termina com a transcrição do poema que Sophia escrveu sobre a sua morte.
Chamou-lhe «Carta(s) a Jorge de Sena:

I

Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde

II

E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida

III

Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como o filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
– Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

IV

E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Não desperdices o tempo que os deuses te deram.

Nuno Bragança em Directa

Legenda: relógio no «British-Bar»

A NATUREZA NÃO PERDOA ERROS


O homem como a natureza detestam ser aniquilados. Só que a natureza nos revela os seus segredos apenas uma vez. Revelado cada um deles nada mais há a acrescentar.
Além disso, a natureza não perdoa erros. Para o mar ou para o rio, sim é sim e não é não. A natureza nunca diz uma coisa que possa ser desdita pela sabedoria dos homens.

Alexandre Pinheiro Torres em Espingardas e Música Clássica

Legenda: fotografia de Jack Zavala

AINDA POSSO DAR ABRAÇOS COM O BRAÇO DIREITO...


A 29 de Março de 1963, Mário-Henrique ainda está em S. Paulo e escreve à sua «Isabelinha de blusa branca».

Revela que finalmente conseguiu, por portas, travessas, um passaporte, «custou-me os olhos da cara». Negaram-lhe a França e a Alemanha mas está decidido a voltar à «minha saudosa Europa, embora ainda não tivesse conseguido o documento brasileiro que me dá a existência jurídica neste país.»

Aproveita, então, para dizer que «esteve preso quatro dias ao fazer parte da organização do “Congresso da Solidariedade de Pro-Cuba” que agora se está realizando aqui, com gente de toda a parte do mundo. Ao fim desses dias, deputados e advogados camaradas conseguiram “habeas-corpus” e lá saí, mas levei tanta pancada e fiquei tanto tempo pendurado pelos braços (estes sul-americanos têm uma organização político-policial totalmente filha da puta que creio ter ficado com o ombro esquerdo estoirado para o resto dos meus dias. Mas não faz mal, ainda posso dar abraços com o braço direito.
Também me deu uma fúria de fazer qualquer coisa que fique quando me for embora e, assim, aceitei dirigir um grupo de teatro-oficina onde estou agora ensaiando uma peça (“O Auto da Compadecida”) misto de auto medieval, “comédia dell’arte” e peça social. Aí, encontrei um pouco daquele calor humano de que tanto te falo e tanto desejo. Chego a ficar envergonhado ao ver a maneira como aceitam o que eu digo, como desejam compreender-me. Parece que eu sei tudo (e tu sabes que, na realidade, não sei nada, Isabelinha). É gente que deseja, tanto como eu, que não haja mais ódio nem mais violência entre os homens.
Além disso, chamaram-me para assistente de um filme sobre as favelas de S. Paulo (os “queridos” bairros da lata, da fome e da miséria). São dois franceses quem faz o filme, o Maurice e o Jean-Claude, dois tipos do Partido com quem já trabalhei o ano passado num filme sobre Sindicatos (proibido depois, como era de esperar).
É claro que tudo isto, teatro e cinema, não me dá um tostão, mas que importa? Às vezes não tenho dinheiro nem para um cigarro, outras vezes até posso comprar uma dúzia de garrafas de whisky. Mas, de facto, que importa? Não tenho companheira, não tenho casa, não tenho nada…

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos
Legenda: favela em São Paulo

OLHAR AS CAPAS


Memória de Setembro

Egito Gonçalves
Capa: Álvaro Portugal
Edição do Autor, Porto, 1960

Porque te disse no momento exacto a palavra necessária – o
vagão dos prisioneiros pôde partir sem ti

Porque estabelecemos o mapa detalhado dos estreitos carreiros
que atravessem o pântano, a complicada mas segura rede –
erguemos ao abrigo o nosso facho de sangue

Porque soubemos não ficar de mãos vazias à espera da morte e
rasgamos a tempo as cartas de solidão que os correios entre-
gavam – escapamos às frias rajadas de vento norte e desespero

Porque soubemos construir as pontes que vadeiam o medo e
caminhar indiferentes ao piscar dos semáforos – conseguimos
encontrar a água potável, o corta-arame, a clareira onde tínhamos
entrevista

Pacientemente edificamos o tempo com o esforço dos olhos e
velamos para dar à felicidade as boas vindas

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Como o filho corre para a mãe,
assim eu para ti corria…

CONSELHEIROS


É curioso que, seja do que for uma pessoa se queixe, os homens nos digam todos para irmos ao dentista e as mulheres para nos casarmos. E é sempre alguém que nunca fez grande coisa na vida que nos vem dizer como havemos de governar a nossa. É como esses professores da universidade, que nem uma par de peúgas têm de seu, a ensinarem-nos como ganhar u milhão em dez anos, e uma mulher que bem marido conseguiu arranjar a dar-nos conselhos sobre como criar uma família.

William Faulkner em O Som e a Fúria

AO MENOS UM SINAL


A Terra abriu
e tantas são as brechas, que vacila.
Ah, o pavor de tudo quanto vimos
e o vinho dormideiro que bebemos!
Foi tão difícil tudo, tudo…

Ao menos um sinal. Ao menos isso.
Ao menos isso tudo que não veio.

Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

ELSINORE



1

Cheirava a mar em Elsinore
Um leve cheiro a mar misturado
Com o aroma primaveril de ervas e arvoredo

O castelo fora por vezes reconstruído
E uma vez purificado pelo fogo
Tudo fora lavado e pintado
Passado a limpo e exorcizado

No entanto
Numa das salas do castelo
Um quadro do século dezoito mostrava
Uma rainha bela imperiosa arrogante
E no seu rosto a sombra de outro se espelhava
E também as muralhas vermelhas de tijolo
sobre as águas obscuras do fosso projectavam
Uma sombra muito antiga e cor de sangue


2

Cá fora o mar era de um azul claríssimo
Crianças brincavam na relva à luz do sol
E famílias felizes de perto as olhavam
Porém a guia disse que o passado mora do outro lado do castelo
E que o pano só sobe depois do sol descer
E que as palavras só se cruzam como facas
Quando soa a hora em que se embruxa a noite

Eu entre barco e avião cheguei desencontrada
Nada vi da profunda e visionária noite

Sophia de Mello Breyner Andresen em Mar

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A FIM DE SE RECORDAR...


- Vou dizer-te o meu segredo. É muito simples: só se vê com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
- O essencial é invisível para os olhos, repetiu o principezinho, a fim de se recordar.
- Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que perdi com a minha rosa… repetiu o principezinho, a fim de se recordar.
- Os homens esqueceram esta verdade. Mas tu não deves esquecê-la. Ficas para sempre responsável por aquele que cativaste. És responsável pela tua rosa.
- Sou responsável pela minha rosa, repetiu o principezinho, a fim de se recordar.

Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho

Legenda: Desenho de Antoine de Saint-Exupéry

OLHAR AS CAPAS


A Pista do Alfinete

Edgar Wallace
Tradução: E.V.
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 62
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Tab sentia-se fascinado por tudo quanto se relacionava com a loucura criminosa. Nos seus primeiros anos de actividade tinha escrito umam monografia a respeito desse tema: esse trabalho, entre outras especulações gratuitas, continha uma longa série de conclusões a que tinham chegado os estudiosos da matéria.
«Muitos actos que se reputam como sinais de insânia (manias de perseguição, etc.) não têm relação com a mania destruidora, embora revelem anormalidade, noutro sentido. O facto de um homem insistir em calçar um par de botinas de cor diferente ou costumar sair para a rua sem calças, é um indício de tendências homicidas.»

QUERO DORMIR NA ÁGUA DAS PALAVRAS


Quero dormir na água das palavras
que amam o silêncio
e a lentidão da luz
que é o fulgor de uma evidência indecifrável

Quero ser a concha do ingénuo sossego
de uma flor branca
como o monótono murmúrio
de uma respiração solar

Quero ser o ouvido de veludo
de um insecto azul
e quero beber a linfa do olvido
numa boca de argila
para sentir a monotonia ardente
da garganta da terra

António Ramos Rosa em Resumo: a poesia em 2013

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Este meu silêncio é feito de gritos!

José Rodrigues Miguéis em Aforismos e Desaforismos de Aparício

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia

OLHAR AS CAPAS


José Saramago: A Luz e o Sombreado

Fernando Venâncio
Colecção Campo da Literatura nº 53
Campo das Letras, Porto, Novembro de 2000

Fomos muitos os que passámos uma fase de deslumbramento por Agustina. De José saramago é que não se adivinhava semelhante fraqueza. São duas as vezes que dela na Seara Nova se ocupa, à distância de seis meses, e tanto parece ter bastado para a quebra do feitiço. Decerto: logo começara por achar que as ideias da romancista “não se limitam a ser conservadoras: são retrógadas.” Mas, pergunta-se ele, “como é possível não ser submergido pela beleza torrencial desta escrita, que não tem igual na literatura portuguesa deste tempo?” E conclui: se há em Portugal “um escritor de génio”, esse é Agustina Bessa-Luís.
Saramago estava apanhadinho. Mas, meio ano depois, caía em si. Começa devagar, com passos de felino: “Sendo ou não sendo o maior escritor de hoje, é caertamente o que melhor domina e molda o barro da língua.” Mas… ela tem “os defeitos das suas virtudes”, E poderá acabar embalada na música que ela própria produz. Deste modo, “tanta beleza plástica, tanta profundidade”, vão terminar afundadas na confusão, na incoerência.

INDIGNAÇÕES...


25 de Janeiro de 1938

Vivo actualmente com as mais desprezíveis personalidades que provocavam a minha indignação quando era jovem.

Cesare Pavese em Ofício de Viver

TANGO


Fico envolvida no remorso
Quando me ponho, lentamente, a recordar
O que foi a minha vida —
Contigo,
Naquele bar...

Dois anos! Dois pesadelos
Que me engelharam as carnes
E envelheceram os cabelos.

Ao que eu desci na tua companhia!
— Vocabulário, gestos, e o que eu fiz?
Queria ver-te bem, e para isso,
Tornei-me tudo... e até fui meretriz.

Nas mansardas do crime e do pecado
Desafiando a sífilis e a morte
Dei-me nua a dançar!...

E tudo para quê? Pra nada te faltar.

Ó tascas sonolentas, marinheiros,
Risos de escárnios, chufas, bofetadas,
Apitos, sangue, um grande cais, e a Lua,
Pálida, longe, a derramar torpor...

Triste, em surdina, uma guitarra fala!...

Visualidade trágica do amor.

António Boto em Canções


Legenda: pintura de RaymondLeech

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Fernando Assis Pacheco em O Poeta no Supermercado

Legenda: pintura de Diego Rivera

SUCINTAS DECLARAÇÕES DE AMOR


Aqui, no meu bairro de Campo de Ourique, onde deambulo, vejo, frequentemente, palavras escritas a tinta preta nas paredes dos prédios e nos abrigos das paragens dos autocarros, que são sucintas declarações de amor. Por exemplo: “André love Patrícia”. No suplemento semanal do “DN Jovem”, do “Diário de Notícias” , preenchido por textos, em prosa e verso, de jovens escritores, é frequente ver os títulos desses textos redigidos em inglês.
O caso mais impressionante como sinal do domínio da civilização americana e da nossa falta de identidade, é o de uma manifestação pública de estudantes universitários de Lisboa contra o preço das propinas. Nessa manifestação, berrando e gesticulando, os estudantes portugueses, em Portugal, erguiam um cartaz em que se lia “Não pagamos until the end of the world”. De espantosos que é, aqui vos deixo a data do documento que comprova o que vos digo: Diário de Notícias de 15 de Maio de 1992.
Um outro aspecto impressionante é o da alteração que se tem efectuado da escrita de diversos apelidos portugueses acrescentando-lhe um apóstrofo e um s. O senhor Silva, conhecido leiloeiro de livros, de Lisboa, e que anuncia os seus leilões nos jornais, passou a anunciá-los intitulando-se SILVA’S. Admirável, meus queridos tetranetos. Orgulhai-vos de ser portugueses. Desta pátria, a mais formosa e linda, que ondas do mar e luz do luar viram ainda.
O vosso pentavô  António Nunes, pai da vossa tetraavó Natália, mulher do tetravô que vos está escrevendo, era natural de Oliveira de Frades, uma modesta e graciosa vila do distrito de Viseu, onde eu, e a dita vossa tetravó Natália, fomos diversas vezes passar as férias de verão para recompor o corpo e o espírito passeando nas estradas e nos atalhos da localidade. Um dos poucos estabelecimentos aí existentes era a loja do senhor Grilo. Assim era antes do 25 de Abril. Veio a Revolução, veio a liberdade de expressão e, quando fomos de novo a Oliveira de Frades, pasmaram-se-nos os olhos ao lermos s tabuleta sobre a porta do modesto estabelecimento. Dizia: GRILLO’S.

Rómulo de Carvalho em Memórias

QUOTIDIANOS


Há quem sustente que 10% dos europeus hoje vivos (mais de 50 milhões de pessoas) foram concebidos em camas IKEA.

José Cutileiro escrevendo sobre a morte de Ingvar  Kamprad

POETA NO SUPERMERCADO


1.

Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2.

Um homem tem que viver.
E tu vê lá não te fiques
– um homem tem que viver
com um pé na Primavera.


Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.


Cheio de luz – como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio dos mistérios e imprecisões.
Engolirá fogo.


Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

Fernando Assis Pacheco em A Musa Irregular

domingo, 18 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


É assim o homem, caro senhor, tem duas faces: não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo. 

Albert Camus em A Queda

OLHAR AS CAPAS


Sonhar a Terra Livre e Insubmissa

Egito Gonçalves/Luís Veiga Leitão/Papiniano Carlos
Desenho de Augusto Gomes, Vinheta de José Rodrigues
Capa: Armando Alves
Colecção Duas Horas de Leitura nº 16
Editorial Inova, Porto, Fevereiro de 1973

Carta


Lanço as palavras ao papel
como pescador calmo
lança os barcos ao rio.
Só no fundo, no fundo inviolado,
contraio e espalmo
as minhas mãos, mãos de afogado
morrendo à sede.

– Meu amor estou bem –

Quanto te escrevo,
ponho os olhos no teu retrato
pendurado nos ferros da minha cama
para que as palavras tenham o sabor exacto
de quem me ouve,
de quem me fala,
de quem me chama.

«Meu amor estou bem »

Ontem vi a Primavera
numa flor cortada dos jardins.
Hoje, tenho nos ombros uma pedra
e um punhal nos rins.

«Meu amor estou bem »

Se a morte vier, querida amiga,
à minha beira, sem ninguém,
hei-de pedir-lhe que te diga:

«Meu amor estou bem » 

sábado, 17 de fevereiro de 2018

PARA SER LIDO MAIS TARDE


Um dia
quando já não vieres dizer-me Vem
jantar

quando já não tiveres dificuldade
em chegar ao puxador
da porta quando

já não vieres dizer-me Pai
vem ver os meus deveres

quando esta luz que trazes nos cabelos
já não escorrer nos papéis em que trabalho

para ti será o começo de tudo

Uma outra vida haverá talvez para os teus sonhos
um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda

Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo
Ouvirás com encanto alguém que não conheço
nem talvez ainda exista neste instante

Mas para mim será já tão frio e já tão tarde

E nem mesmo uma lembrança amarga
ou doce ficará
desta hora redonda
em que ninguém repara 

Mário Dionísio

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

NÃO TER O DOMINGO VALIDO A PENA


Ricardo Reis rodeou a praça pelo sul, entrou na Rua dos Douradores, quase não chovia já, por isso pôde fechar o guarda-chuva, olhar para cima, e ver as frontarias de cinza parda, as fileiras de janelas à mesma altura, as de peitoril, as de sacada, com as monótonas cantarias prolongando-se pelo enfiamento da rua, até se confundirem em delgadas faixas verticais, cada vez mais estreitas, mas não tanto que se escondessem num ponto de fuga, porque lá ao fundo, aparentemente cortando o caminho, levanta-se um prédio da Rua da Conceição, igual de cor, de janelas e de grades, feito segundo o mesmo risco, ou de mínima diferença, todos porejando sombra e humidade, libertando nos saguões o cheiro dos esgotos rachados, com esparsas baforadas de gás, como não haveriam de ter as faces pálidas os caixeiros que vêm até à porta das lojas, com as suas batas ou guarda-pós de paninho cinzento, o lápis de tinta entalado na orelha, o ar enfadado de ser hoje segunda-feira e não ter o domingo valido a pena.

CANÇÃO DE EL-REI DINIS


Maria: anda o gadinho a trabalhar
Em plena florescência,
É um zumbido de ouro
No pasto em flor da abelha,
E temos o inverno até lá Março.

Um lindo Sol doente,
Como um poeta lírico,
Abre ao Inverno a Primavera:
E, ao néctar da abelha
Que é cor na corola
E música sutil do pólen,
Apetece cantar com Dom Dinis
"Ai, flores, ai, flores do verde ramo".

El-rei Dinis esteve no Castelo
Onde eu existo a uma distância pouca
Troveiro como um choupo à beira-rio
Ó Maria,
Apetece cantar com Dom Dinis:
"Ai, flores, ai, flores do verde pinho",

Com ritmo que leva olhos e tudo,
Filhas de lavradores
Começam a cavar o chão pousio:
Margaridas e crucíferas,
Lírios brancos e roxos,
Maria, há muitas flores para as abelhas.

A terra é graciosa,
Cá mesmo na prisão, descalço e nu,
Na derrota dos anos.
— Cantar velho, Maria,
Com tanta flor de hastes eretas
Toucando o verde prado?

Afonso Duarte em Ossadas

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


No silêncio da terra. Onde ser é estar.

António Ramos Rosa

Legenda: pintura de Winslow Hommer

RESTOS DE UM ANTIGO GOSTO DE SABER VESTIR...


Mário-Henrique Leiria, a 29 de Janeiro de 1963, ainda está em S. Paulo.

Conta a Isabelinha que anda «atarefadíssimo dando “golpe” sobre “golpe para conseguir documentos (mesmo falsos, se necessário) e raspar-me definitivamente deste esterco brasileiro. Aliás, ainda hoje estou para saber realmente qual foi a verdadeira razão que me fez vir para aqui… ou talvez saiba e não quero reconhecê-la…»

Aproveita para agradecer uma gravata que Isabel lhe enviou por ocasião do seu 40º aniversário, ocorrido a 2 de Janeiro:

«Porque dizes tu que o teu presente é ridículo? Isabelinha, nada que venha de ti pode ser ridículo; há tanta ternura em mim por tudo que és tu; que nada poderá ser ridículo para mim. Para além disso, se fosse eu a comprar a gravata, teria escolhido exactamente a que tu me enviaste. A pessoa que me trouxe a gravata teve um comentário que acertou mesmo: “Quem te mandou esta gravata deve conhecer-te muito bem…” Apesar de tudo, doce Maruska, ainda mantenho uns restos do meu antigo gosto por saber vestir, há quem diga que, quando quero. Sou o tipo que mais estranhamente e mais “blasément” veste em S. Paulo.»

O final da carta deu nisto:

«Peço-te que continues a falar de ti, da tua nova e maravilhosa vida, do teu John, de tudo o que, para ti, vale a vida. Peço-te também uma coisa; que sempre que tiveres notícias da Fipsy me contes como ela vai sendo feliz. Porque te faço este pedido, não sei… ou talvez saiba demais; é que me resta, saber que ele é feliz e continua a sê-lo… Que queres, querida Maruska, sou assim!
… e agora vou acabar de ler um bom e saudável romance policial e liquidar o resto da garrafa de vodka (“Bogka” para fingir que sei russo) que está ao alcance da minha mão direita (como bom deus pagão que posso perfeitamente ser, não tenho o “Filho” à mão direita, mas sim um objecto de maior libertação e realidade).

OLHAR AS CAPAS


A de Açor

Helen Macdonald
Tradução: Ana Falcão Bastos
Capa: Carlos Miranda numa adaptação com uma ilustração de Chris Wormell
Lua de Papel, Lisboa, Novembro de 2015

Procurar açores é como procurar a graça divina: acontece, mas não muitas vezes, e não sabemos dizer quando nem como. Mas as hipóteses melhoram ligeiramente nas manhãs calmas e límpidas do início da primavera, pois é nessa altura que os açores largam o seu mundo por baixo das árvores para fazerem a corte uns aos outros lá no alto, no céu. Era isso que eu tinha esperança de ver.

A BELA DO BAIRRO


Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor


Fernando Assis Pacheco em Variações em Sousa

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

POSTAIS SEM SELO


Em paisagens humanas importa-me a sede dos olhos que ainda procuram.

Patrícia Baltazar

Legenda: fotografia de Vivian Maier

COMO PODE ISTO SER ?


Durante o dia todo me ofenderam
e até ameaçaram devorar-me.
Espiaram minha vida passo a passo.

Bebe pela tua taça as minhas lágrimas.
Já não tento dizer que em ti confio.

Como pode isto ser

se tudo vem escrito no teu livro?
                                 
Mário Castrim em Do Livro dos Salmos

OLHAR AS CAPAS


O Crime do Dragão

S.S.Van Dine
Tradução: Roberto Ferreira
Capa: Cândido Costa Pinto
Colecção Vampiro nº 97
Livros do Brasil, Lisboa s/d

A propriedade era de arvoredo: cedros, carvalhos e pinheiros, com trechos cobertos de mato e jardins rústicos. A casa ficava sobre uma pequena elevação.
Avistavam-se de todos os lados sinais da vida estuante de Nova Iorque. No entanto, uma sensação de mistério e isolamento se me insinuou no espírito e compreendi, pela primeira vez, o anacronismo daquele lugar. Efectivamente, Inwood mais parecia uma fortaleza, perdida em remoto canto do mundo, do que uma parte da cidade, a que, no entanto pertencia.

O SOM DO SILÊNCIO


Devagar, como se tivesse todo o tempo do dia,
descasco a laranja que o sol me pôs pela frente. É
o tempo do silêncio, digo, e ouço as palavras
que saem de dentro dele, e me dizem que
o poema é feito de muitos silêncios,
colados como os gomos da laranja que
descasco. E quando levanto o fruto à altura
dos olhos, e o ponho contra o céu, ouço
os versos soltos de todos os silêncios
entrarem no poema, como se os versos
fossem como os gomos que tirei de dentro
da laranja, deixando-a pronta para o poema
que nasce quando o silêncio sai de dentro dela.

Nuno Júdice em Resumo: a poesia em 2010

Legenda: pintura de Van Gogh

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

OLHAR AS CAPAS

Viagens

Mário Castrim
Capa: pormenor de um dos Desenhos da Prisão de Álvaro Cunhal
Edição da célula dos Trabalhadores Gráficos da Renascença Gráfica, Lisboa 1977

Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.
Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

- Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

COMPRAM COISAS FEITAS AOS MERCADORES...


Só se conhecem as coisas que se cativam. Os homens já não têm tempo para tomar conhecimento de nada. Compram coisas feitas aos mercadores. Mas como não existem mercadores de amigos, os homens não têm amigos.

Antoine de Saint-Exupéy em O Principezinho

Legenda: fotografia de Vivian Maier

OLHAR AS CAPAS


Escritos Íntimos
2º Volume

Roger Vailland
Tradução: Ana Rabaça
Colecção Estudos e Documentos nº  209
Publicações Europa-América, Lisboa s/d

5 de Junho de 1956 :

Regresso de Moscovo.

À minha chegada, quinze dias antes, a estátua em pé de Estaline estava ainda no hall do aeroporto. No dia da minha partida, continuava lá, mas coberta com um resguardo branco. Em breve a vão retirar. Os homens da construção civil fixá-la-ão com nós corredios e puxarão a talha.
Cheguei a amar os tiques da sua linguagem. Colocava as primeiras pedras de um raciocínio, depois dizia «prossigamos»; adorei isso. Mas ao regressar a casa, foi bem preciso retirar o seu retrato da parede, por cima da minha secretária; deixá-lo, seria ter tomado partido contra aqueles que, lá, prosseguem a construção do mundo que ele começou a edificar, e a favor daqueles que, aqui ou algures, aspiram à tirania.
Nunca mais colocarei o retrato de um homem nas paredes da minha casa.
No canto da biblioteca reservado aos historiadores da Revolução Francesa tirei também as duas grandes gravuras da época, intituladas Jornada de 21 de Janeiro de 1793, Jornada do 16 de Outubro de 1793; vê-se aí o carrasco mostrar à multidão a cabeça de Capet, um outro carrasco erguer o cutelo da guilhotina, enquanto os auxiliares mandam subir para o cadafalso Maria Antonieta. A multidão aplaude. Convencional, teria votado pela morte de Luis XVI e pela de Maria Antonieta; quero com isto dizer que hoje ainda, em circunstâncias análogas, votaria a morte. Mas Meyerhold que amo, que amava, foi fuzilado, em execução de um julgamento injusto, ditado por Estaline, que eu amava. Nunca mais poderei alegrar-me por o sangue ser vertido, mesmo o dos meus inimigos, excepto se for por mim mesmo, em combate leal.

AGORA VOU EU MANDAR A DANÇA!


- Agarra a moça, rapaz!
- Passo em frente e outro atrás!
- Cintura bem agarrada, meia volta bem rodada!
- Sempre em frente!
- Troca o par mas tem cuidado, não sejas tu o trocado!
-Agarra as mãos nos quadris, passo em frente olhos nos olhos!
. Batem nariz co maris!
- Meia volta e sempre em frente!
- De mãos dadas, de mãos dadas vão sentindo o que quiserem mas que as bocas vão
  caladas!
- Agora os braços em arco!
- As moças passam por baixo como a rã passa no charco!
- Duas passadas pra dentro!
- Duas passadas pra fora!
-Quatro voltas como o vento e os alcatruzes da nora.
- Segue em frente!
- Quem tiver as pernas moles é melhor ir pró lugar!
- O Amor tem sete foles!
- Sete passos a girar!
- E troca o par!
- Troca o par mas tem cuidado que a cachopa é cobiçada e já me cheira a noivado!
- Sempre em frente!
-Agora bem agarrados vamos dar mais duas voltas!
-Quem quiser pode largar que eu vou tomar o lugar…

Eduardo Olímpio em António dos Olhos Tristes