sexta-feira, 2 de março de 2018

ATROPELAMENTO E FUGA


Contar a minha vida. Sempre que me falam nis­so, imagino-me sentado num banco de cozinha, com um grosso camisolão, ombros caídos, a olhar por uma janela alta e estreita o que ela deixa ver da floresta. Alguém deixou um machado na peque­na clareira em frente da janela. Andarão a rachar lenha. Grandes aves esvoaçam lá por fora, não muito alto decerto. E, além disto, silêncio. O pro­fundo silêncio do que não volta mais.
Mas que floresta? Nunca vivi em nenhuma flo­resta. Nem sequer perto de. Talvez uma lógica in­terna — penso então — comande os próprios des­mandos do nosso pensamento. E esse indivíduo mais ou menos ruço, no meio da cozinha lajeada, olhando o que não existe, queira dizer apenas que tudo foi bastante diferente do que eu teria deseja­do. Ou será a suspeita (uma quase certeza) de que contar a nossa vida é impossível. Por isso, à ideia de lembrar o que vivi e como, correrei a meter-me na pele de um qualquer em que mal me reconhe­ço. É o que se chama atropelamento e fuga.

Mário Dionísio em Autobiografia

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