segunda-feira, 5 de março de 2018

SOPA DOS POBRES


Pelo menos, uma vez por semana, para ir buscar um dos netos ao colégio, tenho que passar pela Igreja dos Anjos.
Em frente está a chamada «Sopa dos Pobres»
Aos anos que a sei ali.
E sempre, mas sempre, recordo a comovida evocação que José Saramago lhe faz no 2º volume dos Cadernos de Lanzarote e já aqui transcrita.


Num artigo de Ângela Caires publicado na Visão, sobre António Champalimaud, leio que o tio Henrique Sommer, em carta com valor testamentário dirigida às manas Albana e Maria Luísa, lhes recomendava que não se esquecessem de distribuir, pelo Natal, dois contos de réis à Sopa dos Pobres da Freguesia dos Anjos, de Lisboa. Naturalmente, o generoso Sommer (que em glória esteja) desejava que não sofresse mudança, depois do seu passamento, a beneficente prática que instituíra.

Quem poderia imaginar que esta informação, escrita ao correr da pena, viria lançar uma luz nova sobre a minha biografia secreta? De facto, não foram poucas as vezes, no tempo da adolescência, que ocupei um envergonhado lugar na fila de aspirantes à sopa e ao quarto de pão que se serviam naquele atarracado e soturno edifício fronteiro à Igreja dos Anjos… Mais ou menos por essa altura devo ter aprendido na aula de Física e Química da Escola Industrial Afonso Domingues o princípio dos vasos comunicantes, mas só hoje é que consegui perceber, sem reservas mentais nem dúvidas formais, como se efectua a transmissão da riqueza e do bem-estar dos que estão em cima para os que estão em baixo, do conto de réis para o quarto de pão, da fartura para falta. Por muitos que fossem os seus pecados, Henrique Sommer nunca ficaria no inferno, sempre haveria uma concha da sopa para o tirar de lá…



Jardim dos Anjos, Lisboa.

Há uns anos retiraram todos os bancos do jardim.

Tinham-se transformado em entreposto de compra e venda de droga, poiso de prostitutas.

Os negócios continuam, mas agora há, que a pé firme, aguardar a chegada de clientes.

Num desses bancos, nas Recordações da Casa Amarela, o destroçado João de Deus mantém um delicioso diálogo com um sem-abrigo.

Sentados, olham o edifício da Sopa dos Pobres.

- Tem um cigarrinho?
- Hum?...
- Um cigarrinho…
(Longa pausa)
- Já abriu!
- Hum?
- Já abriu!
- Tal é a comida?
- Não é má, mas ao fim de quatro dias cansa… Tem cartão? É preciso ter cartão. O senhor tem que ir à Junta de Freguesia do seu bairro e pedir um cartão… igual a este.
- Quem não tem cartão?
- Se o refeitório não estiver chão talvez o porteiro o deixe entrar, caso contrário é melhor arranjar um ali à porta, com meia nota é de caras.
- Ai é?
(Pausa)
- Vou andando. Não gosto de chegar no fim, fica-se à espera de mesa e a comida arrefece num instante.

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