quinta-feira, 16 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO

 

Não creio no mundo, nem no dinheiro, nem no progresso, nem no futuro de nossa civilização. Se houver um futuro para a humanidade, terá de ser algo muito diferente do que temos hoje.

D.H. Lawrence

Legenda: pintura de Pieter Bruegel, o Velho

OLHAR AS CAPAS


Arte de Furtar

Anónimo do Séc. XVII
Desenhos de Eduardo Batarda

Comentários de Natália Correia, Armando Castro, Hernâni Cidade, João Bénard da Costa

Capa, arranjo gráfico: Paulo-Guilherme

Edições Afrodite, Lisboa 1970

Todos falam na política, muitos compõem livros dela, e no cabo nenhum a viu, nem sabe de que cor é. E atrevo-me a afirmar isto assim, porque, com eu ter poucos conhecimentos dela, sei que é uma má peça, e que a estimam e aplaudem, como se fora boa; o que não fariam bons entendimentos, se a conheceram de pais e avós, tais, que quem lhos souber, mal poderá ter por bom o fruto que nasceu de tão más plantas. E para que não nos detenhamos em coisa trilhada, é de saber que no tempo em que Herodes matou os inocentes, deu um catarro tão grande no Diabo, que o fez vomitar peçonha; e desta se gerou um monstro, assim como nascem ratos ex materia putridi, ao qual chamaram os críticos Razão de Estado. E esta senhora saiu tão presumida, que tratou de casar, e seu pai a desposou com um mancebo robusto e de más manhas, que havia por nome Amor Próprio, filho bastardo da primeira desobediência. De ambos nasceu uma filha a que chamaram Dona Política. Dotaram-na de sagacidade hereditária e modéstia postiça. Criou-se nas cortes de grandes príncipes, embrulhou-os a todos. Teve por aios a Maquiavel, Pelágio, Calvino, Lutero e outros doutores desta qualidade, com cuja doutrina se fez tão viciosa, que dela nasceram todas as seitas e heresias que hoje abrasam o mundo. E eis aqui quem é a senhora Dona Política.

POEMA DA MULHER DOS CABELOS BRANCOS

A mulher dos cabelos brancos estava à janela do primeiro andar
com os antebraços poisados no parapeito.
Tinha um xaile de malha sobre os ombros,
cruzado à frente e as mãos metidas nele.

Quentinha, a mulher dos cabelos brancos.

Postada à janela,
muito ocupada em fazer coisa nenhuma,
com os antebraços poisados no parapeito,
a mulher dos cabelos brancos
só seguia com os olhos quem passava na rua.
Ela nunca tinha ouvido falar no Aristóteles,
nem no Descartes, nem no Sigmund Freud,
mas sabia coisas concretas que a vida prática lhe ensinara.
Sabia que Eva tinha sido feita
de uma costela de Adão,
o que se prova
por os homens terem uma costela a menos do que as mulheres.
E também sabia que o Sol anda à volta da Terra
como é evidente,
e que as salamandras vivas,
postas no fogo,
não morrem nem sequer se queimam,
o que não é evidente mas é certo.
E por saber todas estas coisas,
e muito mais,
a mulher dos cabelos brancos sentia-se muito quentinha
com os antebraços poisados no parapeito.

Eis que, porém,
o relógio do tempo despertou-a.
Então,
pausadamente,
a mulher dos cabelos brancos ergueu o busto,
fechou a janela,
e foi sentar-se na cadeira do costume,
aconchegadinha,
a ver televisão.

António Gedeão de Novos Poemas Póstumos em Obra Completa

quarta-feira, 15 de maio de 2024

CONVERSANDO


Citação  de um diálogo do filme de João César Monteiro A Comédia de Deus:

« Estás aonde? Em casa ou na fábrica? Esse Tomé só arranja confusões. Não, não. De amaneira nenhuma. Não te preocupes. Está tudo a andar. O costume. A mulher da limpeza voltou a não aparecer. Depois vem com umas grandes tretas. É uma chatice. Mas lá terá que ser… O problema é que não posso deixar isto entregue aos bichos. Quando o Romão vier. Combino as coisas com ele. Se tiver uma aberta passo ainda hoje pelo banco e dou uma palavrinha ao gerente. Fica descansada. E ainda temos quantos quilos em stock? Estamos à vontade. Não senhor. A ideia é muito simples: deixa-se os clientes a salivar durante uns dias com o anúncio de esgotado e relança-se o Paraíso em força. . Claro. Com um novo preço que faça jus à especialidade da casa e à originalidade do sabor. Ò menina, vem no Marx. Não há omeletes sem ovos. Aumenta os salários que os resultados aparecem. É elementar e tu sabe-lo por experiência própria: também te saiu do pêlo. Também fiquei com muito boa impressão, sim senhor. Vive sozinha com a mãe numa barraca? Também não me pareceu nada doidivanas. A ver vamos, mas uma andorinha não faz a Primavera. É. De que parte do Minho? Conheço muito bem. Papei por lá, se não estou em erro, a melhor cabidela da minha vida. É boa gente, lá isso é. É muito bonita e ainda não perdeu aquela inocência fresca e provinciana. Vou retocá-la ao  gosto das madonnas venezianas, mas sem apagar os traços rurais. Pode ser um chamariz, pode, mas toda a sabedoria vai estar no conservá-la. Alguma vez te deixei ficar mal? Ó Judite, sabes perfeitamente que em serviço não brinco. Está bem. Cá a espero. Rosário. Rosário quê? Não, não. A mim, essa Francisca nunca me enganou. Vi logo. Queixa na Judiciária? Não te metas nisso. Não paga o incómodo. Também está debaixo de olho, mas deixa-a pousar. Não quero levantar a lebre.»

Gosto deste «… vem no Marx».

O meu pai dizia muito que está tudo no Marx. Que também devia ler Lénine. De um e outro li alguma coisa.

O livro de Henri Krasucki que hoje aparece em Olhar as Capas, custou-me 35 escudos, ao câmbio de hoje, 0,175 euros.

Livros como este ajudaram a completar o que de Karl Marx fui lendo, a consciência de um Sindicato, a luta de classes, que a sociedade capitalista assenta na propriedade privada, capitalista, dos meios de produção e, por consequência, na exploração.

Tudo o mais decorre daqui.

Sim, está tudo no Marx!

Legenda: fotograma de A Comédia de Deus de João César Monteiro

OLHAR AS CAPAS

Sindicatos e Luta de Classes

Prefácio Georges Séguy

Henri Krasucki

Tradução: Mário Neto

Editorial Estampa, Lisboa, Outubro de 1971

O que define o capitalista, não é o ser bom ou mau, bem educado ou grosseiro, é a sua «função» nesse sistema: não se pode ser capitalista sem explorar os trabalhadores, e não imperfeitamente, mas o mais que for possível.

SE QUISERES FAZER AZUL

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz — eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé — e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.

Nuno Júdice

terça-feira, 14 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS


A Crise da Consciência Pequeno-Burguesa

Augusto da Costa Dias

Capa: João da Câmara Leme

Colecção Portugália nº 1

Mas além de exigência natural das novas estruturas industriais o comboio é ainda, quer na praxis, quer no plano da consciência individual, um subersor das categorias ancilosadas do espaço e do tempo: e instigando ou coagindo os homens distantes às relações mais íntimas, os seus silvos vêm golpear sensibilidades enclausuradas, afeitas a pequenas áreas, com um quadro de estímulos secularmente fixo. Pensemos agora que o movimento ferroviário sofre, entre 1884 e 1900, a significativa evolução que vou resumir, reportando-me apenas àqueles dois anos, sem me deter nos intervalares.

RECOMPONHO O LUME

Hoje arrumei a estante.

 

Livros empilhados há anos pelos cantos
alojando pequenos animais no rés-do-chão
imensas caves larvares de encontro aos tacos

 

aqui e ali um fio de teia

mas nunca a aranha

 

não gostam de ler.

 

Um a um

limpo a lombada

folheio

miro de relance o índice. Este é para aqui!

 

Coloco-o no lugar exato da prateleira

espaço reservado à eternidade

 


os outros aguardam
fitam-me com seus olhos pétreos
os mais velhos largando odores
a pó de arroz
a pó
a pétalas amortalhadas
a invernos chuvosos
lumes de lareiras e o ruído da página que se vira.

 

Aguardam com olhos pétreos

suspensos da decisão

 

o pensamento universal ficou na prateleira de cima

escorre água pelas vidraças


os manifestos revolucionários logo ao lado
esquerdo nos seus vermelhos fulgentes
na de baixo uma coleção de bichos da national geographic
dorsos em couro tartaruga

 

as biografias olham-me estarrecidas.
Tantos anos para isto?
Perguntam

 

as biografias dos que tombaram

para que houvesse amanhã

 

tombaram mas agora os levanto

entalando-os com uma jarra

para não escorregarem

agora sim, arrumei a revolução.

 

Recomponho o lume

que soçobrava nas próprias cinzas

e logo um labareda recomeça

João Habitualmente


Nota do Editor: este poema de Nota do Editor: este poema de João Habitualmente foi copiado do jornal Público, 10 de Abril de 1974

Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

NOTÍCIAS DO CIRCO

 “É injusto dizer que Israel quer eliminar os palestinianos”, diz Paulo Rangel

O ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, considerou, em entrevista ao jornal espanhol El País, que "seria muito injusto dizer que Israel pretende eliminar o povo palestiniano".

“É injusto dizer que Israel quer eliminar os palestinianos”, diz Paulo Rangel

O governante português admitiu que "há uma catástrofe humana que tem de ser condenada" e "reparada", mas recusa a tese de genocídio no conflito entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, porque "o genocídio pressupõe a vontade de eliminar um povo", justificou.


“É injusto dizer que Israel quer eliminar os palestinianos”, diz Paulo Rangel
Paulo Rangel também confirmou que o Governo português não vai, pelo menos para já, juntar-se a Espanha para reconhecer a soberania do Estado da Palestina. Portugal está à espera "do momento mais oportuno para dar esse passo". O ministro admite que a posição portuguesa é semelhante à espanhola, que se prepara para reconhecer a soberania da Palestina nos próximos dias, mas "não é exactamente a mesma". Há "uma diferença temporal".

Copiado do Público de hoje.

BLOGUEANDO POR AÍ

Passagem pelo blogue Antologia do esquecimento:

«Habitações, escolas, hospitais em ruínas. Sob as ruínas, o cheiro putrefacto dos corpos em decomposição. As bombas não cessam de cair, esventrando mulheres, estropiando velhos, esmagando crianças. Aos milhares. Há relatos de fome, de gente enterrada vida, outros a matarem a sede com água do mar, relatos de tortura, de perseguições, destruição massiva de instalações da Organização das Nações Unidas, jornalistas silenciados, à bala ou à censura, prisões e detenções administrativas, aos milhares, aos milhares. Por cá, celebram-se as unhas da Iolanda. Um statement. E os apelos à paz. E espantam-se pardais com o televoto português, que deu pontuação máxima a Israel. Continuemos a tratar o caso com unhas de gel e outfits. Posição, era não ter cantado. Ficar em silêncio no palco. E mandar aquilo tudo à merda. O resto é só mais um número, espectáculo tão ridículo, boçal e degradante quanto o da Catarina Furtado a cortar uma madeixa de cabelo em solidariedade para com as mulheres iranianas.»

OLHAR AS CAPAS


As 7 Vidas de José Saramago

Miguel Real E Filomena Oliveira

Capa: Alceu Nines

Companhia das Letras, Lisboa, Setembro de 2022

Escrever uma biografia não é fácil. Escrever uma biografia de um homem controverso, crítico, denunciante e acusador das sem-razões por que a História tem sido construída – e das iniquidades que se espalham hoje na paisagem do mundo – pressupomos ser menos fácil ainda.

O OUTRO LADO DAS ESTANTES


Chamo-lhe o Outro Lado das Estantes.

São livros que vieram da biblioteca do meu pai, também da do meu avô.

São livros, técnicos, outros que não sei como classificá-los.

Ficam aqui por mera curiosidade para memória futura.


Filhos, netos e bisnetos, outros descendentes, terão um dia que lidar com tudo isto. Não sei bem como e eu também não sei explicar.

Talvez seja um tempo em que já não haja livros ou espaço para os aconchegar.

No Outro Lado da Estante pego hoje num livro encadernado, comprado pelo meu pai na Festa do Avante, que reproduz os exemplares do Avante publicados antes de 25 de Abril, bem como o exemplar do 1º número do Avante em tempo de Liberdade, publicado em 17 de Maio de 1974.

Provavelmente o meu pai, com a compra deste livro, quis recordar alguns dos Avantes clandestinos que, em tempo de ditadura leu, porque sempre se afirmou como marxista-leninista. Recorda as muitas vezes que disse que, para além de Marx, não todo, não todo, deveria ler Lénine mas apenas se ficou pelo julgado necessário.

O Jornal dos Trabalhadores da Democracia e do Socialismo

Edições Avante, Lisboa 1977.

CARTA(S) A JORGE DE SENA

I

Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde

II

E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida

III

Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem —
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse

Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
— Grandioso vencedor e tão amargo vencido —
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade

E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

IV

E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta

Sophia de Mello Breyner Andresen de Ilha em Cem Poemas de Sophia

domingo, 12 de maio de 2024

COMEÇOS DE LIVROS


A minha vida de leitor está repleta de grandes livros, de grandes começos.

Há dias, reparei que Moby Dick ainda não tinha entrado em Olhar as Capas.

Espanto dos espantos.

Já lá mora e agora entra nos Começos de Livros.

Lamentavelmente perdeu-se – onde? Como? - a velha edição, comprada pelo meu pai, da Moby Dick da Estúdios Cor. A que hoje faz parte da Biblioteca da Casa é uma edição da Unibolso, mas mantém a tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves.

É um enorme começo de livro de um fascinante livro, um clássico da literatura.

«Tratem-me por Ismael. Há alguns anos – não interessa quantos – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.»

Sempre guardei – está devidamente sublinhado -  aquele:

«Sempre que sinto na boca uma amargura crescente, sempre que sinto na minha alma a humidade e a chuva de Novembro, sempre que minha hipocondria me domina de tal modo que é necessário um forte princípio moral para me impedir de sair deliberadamente para a rua e socar metodicamente o chapéu das pessoas - … então considero que é a altura de fazer-me ao mar e o mais depressa possível.»

Um grande livro e não poderá ser esquecido o filme que John Huston realizou em 1956. Uma daquelas tarefas julgadas quase impossíveis mas de que o velho John Huston, se sai mito bem, tal como Gregory Peck no papel do capitão Ahad, para nunca se deixasse de ouvir a perna de pau a bater no convés do navio Pequod.

Também não se pode esquecer, logo a abrir o livro, a Etimologia fornecida pelo defunto contínuo de uma escola elementar:

«O pálido contínuo! Bem me recordo dele, com a roupa, o coração, o corpo e o cérebro a largar o último fio… Sacudia sem cessar o pó dos seus velhos léxicos e das suas velhas gramáticas, com um lenço bizarro, cujo padrão, como por escárnio, representava as joviais bandeiras de todas as nações do mundo. Adorava espanar a poeira dos velhos calhamaços; aquilo era uma maneira subtil de não esquecer que também se havia de transformar em pó.»

O capitão Ahab impõe à sua tripulação a concretização do seu maior desejo – destruir a grande baleia branca. Sob o seu rígido comando a missão comercial do Pequod é alterada tornando-se uma missão de vingança.
Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma criatura, mas sim o símbolo de algo desconhecido.
Sem medo das catástrofes naturais, dos maus presságios ou mesmo da morte, Ahab impele o seu navio em direcção ao perigo.

O capitão Ahab, lembra à sua tripulação que o objectivo da viagem comercial vai ser alterada e passa a ser uma demanda vingativa, a caça à baleia branca que o tinha deixado sem uma perna e que agora era uma perna que tinha sido confecionada a bordo com um pedaço de osso polido da queixada de um cachalote.

Mais à frente, páginas 310 surge-nos o avisos:

Não há portanto nenhum meio de saber-se como é a baleia sem irmos cacá-la. Simplesmente isso corresponde ao risco de uma pessoa ser esmagada pelo peso da sua curiosidade e depois arrastada para o fundo do mar. Portanto, aconselho ao leitor que modere a sua curiosidade a respeito das baleias.»

O livro está largamente sublinhado. Numa das margens a observação: ler o Sermão de Jonas na baleia. «O Senhor fez com que um grande peixe engolisse Jonas, e ele ficou dentro do peixe três dias e três noites».

Mas fiquemo-nos com o capitão Ahab monologando, páginas 167, com o seu cachimbo, recordando eu velhas frases lidas aqui e ali: «um fumador de cachimbo nunca está só», ou este pedaço de prosa do jornalista António Carvalho: «Quando os meus filhos nasceram, o fumo do meu cachimbo recebeu-os uma a um, como uma nuvem de boas vindas. Uma nuvem feita de imaginação e de sonho. Todas as minhas casas ficaram impregnadas desses odores – a cada um o seu perfume. Mais tarde quando me separei, os meus filhos confessavam-me que sentiam a falta do cheiro do meu cachimbo. Pelo menos ficou-lhes o meu rasto… Efémero, como qualquer fumo…»

Mas regressemos ao monólogo do capitão:

«Ahab ficou por um momento debruçado sobre a amurada, e depois, como já era seu costume recente, chamou um dos marinheiros de quarto e mandou-o buscar ao camarote o cachimbo e o banco de marfim. Acendendo o cachimbo na lâmpada da bitácula e colocando o banco a barlavento, sentou-se a fumar.

Duranta alguns momentos saíram da sua boca constantes e densas baforadas de fumo que o vento lhe arrojava à face.

«Porque será – monologou ele – que este fumo perdeo condão de ma calmar? Oh! meu cachimbo, triste vida a minha se os teus encantos se perderam! Aqui tenho estado eu a fumegar sem prazer – a fumar sem dar por isso, contra o vento; e soltando fumaças nervosas como uma baleia moribunda, cujos derradeiros jacto são mais violentos e cheios de agonia. Que se passa contigo, meu cachimbo? Foste criado para tranquilizar, para lnçar suaves vapores brancos para o meio de tranquilos cabelos brancos e não para as ásperas madeixas cor de ferro do teu amo. Não mais fumarei…

Lançou ao mar o cachimbo ainda aceso; o lume silvou nas ondas e no mesmo instante a ressaca do navio lançou para o largo a bolha que assinalava o ponto onde o cachimbo se tinha afundado.»

Legenda: Gregory Peck no filme Moby Dick de John Huston

OLHAR AS CAPAS


A Criação da União Operária Nacional

César Oliveira

Afrontamento, Porto, Fevereiro 1973

A União Operária Nacional em 1914 marca, por um lado, o triunfo do sindicalismo revolucionário e a consequente derrota (agora praticamente definitiva) do Partido Socialista e, por outro, o nascimento da primeira estrutura organizada, à escala nacional, do operariado português.

DITOS & REDITOS


Por fora cordas de viola, por dentro pão bolorento.   

Desistir nunca é o mais indicado.

Quem estuda não guarda cabras.

Presunção e água benta, cada um toma a que quer.

Elogio em boca própria é vitupério.

A grande mudança está na nossa cabeça.

O fundo do poço existe, mas há sempre um pedaço mais que se pode escavar.

Caminhar, por vezes, é uma fuga.

sábado, 11 de maio de 2024

OLHAR AS CAPAS


 A Moda Através do Bilhete Postal Ilustrado

Coordenação: Sousa Figueiredo

Texto e Legendas: Maria João Martins

Ecosoluções, Consultores Associados, Lisboa, Novembro de 1999

Esta história de influência repetiu-se durante décadas com outras peças de roupa – o fato masculino de Marlene Dietrich, a gabardine de Humphrey Bogart, os jeans de James Dean, o indispensável chapéu de Indiana Jones. Coleccionamos o que nos é caro e o que queremos roubar à erosão do tempo. Aqui estão ciosamente guardados os ídolos de várias gerações: às silenciosas vamps da década de 2º sucedem-se Deanna Durbin, Esther Williams, Barbara Stanwyck. Hedy Lamarr, Joan Fontaine, Deborah Kerr, Gail Russell e Vivien Blaine, que adoçavam a vida dos cinéfilos nos negros anos da IIª Guerra Mundial. O écran vestia-se da melhor seda. A vida copiava-o como podia.

MARCADORES DE LIVROS


Marcador de Livros pintado por Aida Santos

sexta-feira, 10 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


A experiência fundamental do escritor é o desamparo.

Louise Gluck

Legenda: Louise Gluck

NOTÍCIAS DO CIRCO

Possivelmente, não se saberão tão cedo, os motivos que levaram o comentador- televisivo-Marcelo-Rebelo-de-Sousa-disfarçado-de-presidente-da-república, a destituir o governo de António Costa que era apoiado na Assembleia da República por uma maioria do Partido Socialista.

Em entrevista conduzida por Leonardo Ralha e publicada no Diário de Notícias, Violante Saramago, filha do Nobel português, sente-se chocada com a «Operação Influencer» e escreveu um livro de refexões sobre a demissão do governo a que chamou «70 Dias à Margem da Democracia», em que não poupa críticas a Marcelo Rebelo de Sousa e à procuradora-geral da República Lucília Gago e escolheu para epígrafe do livro uma passagem de «Ensaio Sobre a Cegueira»: «Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.»

«Não queria fazer aqui alguma avaliação jurídica sobre uma matéria para a qual não tenho nenhuma competência, mas como cidadã, como mulher que pensa, e já viu muita coisa, achei que era preciso olhar, ver e reparar. Não vou dizer que não foram inocentes, mas precisam de nos convencer que foram coincidências e não foi tudo preparado. É preciso que nos convençam que, de facto, não houve uma montagem que levou ao que levou. Havia, constitucionalmente, outros caminhos que não quiseram seguir. Têm de convencer um país inteiro que vê cair um Governo, e vê dissolver uma Assembleia da República de maioria absoluta, de que tudo isto está certo do ponto de vista ético, do ponto de vista constitucional e do ponto de vista da política

(…)

«António Costa caiu numa armadilha logo na posse do último Governo, quando o Presidente defendeu no seu discurso que a maioria absoluta dependia da permanência do primeiro-ministro em funções?

O discurso na tomada de posse indiciava que poderíamos ver-nos, um dia, numa situação deste tipo. O Presidente da República sabe muito melhor do que eu, porque sou bióloga e ele é constitucionalista, que na Constituição não há uma letra que diga que o primeiro-ministro é eleito. Até pode não pertencer a nenhuma lista de candidatos. Um partido ganha as eleições e propõe um primeiro-ministro. Portanto, não é o facto de o primeiro-ministro se demitir que implica, legal, institucional e constitucionalmente, qualquer dissolução de uma Assembleia com maioria absoluta».

(…)

«Governo da AD devia estar calado. Começava, por exemplo, por formar uma lista [de ministros] que a O gente percebesse que não foi feita à última hora. É o Presidente da República quem diz e não eu, porque não fui eu que a recebi. Faria muito melhor em não dar o triste espetáculo que foi a eleição do presidente da Assembleia da República. Não estamos a falar da eleição de um gestor de condomínio. Estamos a falar da segunda figura de Estado. Aqueles chumbos sucessivos foram uma coisa inaudita e inimaginável. O Governo da AD, em vez de estar muito preocupado com o facto de, oportunisticamente, o partido de extrema-direita aprovar projetos do PS, devia estar, sobretudo, preocupado em saber como vai governar o país. É que ainda não vi nada. Vi mudar o símbolo, o que é uma coisa absolutamente caricata. Se a coisa prioritária e emblemática é mudar o símbolo, tenho a sensação de que estamos num retrocesso civilizacional preocupante.» 

OLHAR AS CAPAS


O Desporto e as Estruturas Sociais  

José Esteves

Capa: Tomaz Xavier de Figueiredo

Colecção: História e Sociologia do Desporto nº 1

Prelo Editora, Lisboa, Junho de 1967

Na confusão dos valores sociais e desportivos, entre o desporto recreativo-higiénico-educativo, que é o da promoção social, e o espectáculo de características desportivas, há uma pergunta, mais do que urgente, a exigir resposta clara: em que medida é que o espectáculo desportivo é socialmente aceitável?

ABRIL DE SIM, ABRIL DE NÃO

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro

vi o Abril que foi e Abril de agora

eu vi Abril em festa e Abril lamento

Abril como quem ri como quem chora.

 

Eu vi chorar Abril e Abril partir

vi o Abril de sim e Abril de não

Abril que já não é Abril por vir

e como tudo o mais contradição.

 

Vi o Abril que ganha e Abril que perde

Abril que foi Abril e o que não foi

eu vi Abril de ser e de não ser.

 

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)

Abril de Abril despido (Abril que dói)

Abril já feito. E ainda por fazer.


Manuel Alegre

quinta-feira, 9 de maio de 2024

POSTAIS SEM SELO


Invadiu-me uma sensação de calma, de tristeza e de fim.

Virginia Wolf

Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.

É PERMITIDO AFIXAR ANÚNCIOS


Esta é a capa do mês de Abril da  revista «Somos Livros» , distribuída gratuitamente, nas lojas das livrarias Bertrand.

Uma frase de Sérgio Godinho, tirada da entrevista que no corpo da revista deu a Marta Ribeiro:

«Muitas vezes, o povo não é nada sábio.»

OLHAR AS CAPAS


Moby Dick

Herman Melville

Tradução: Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves

Capa: José Rêgo

Colecção: Biblioteca Universal Unibolso n 93

Editores Associados, Lisboa s/d

Tratem-me por Ismael. Há alguns anos – não interessa quantos – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente, quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.