sexta-feira, 29 de março de 2024

ABRIU-SE UMA FLOR NA MÚSICA

Abriu-se uma flor na música.

Uma flor de ordem e fogo.

E caiu-te na cintura.

 

Morderam-te labaredas,

lentas e surdas,

até colocar a ponta

em punhal, sobre a medula.

 

Correram de cima abaixo

- oiro, ou vermes, ou agulhas

 

E tu caíste redondo,

roído de tempo ou música.

 

Fernando Echevarria em Cadernos do Meio Dia nº 2

quinta-feira, 28 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


           Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                    João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


Marcelo Caetano proferiu, no dia 28 de Março de 1974, através da rádio e da televisão, mais uma das suas habituais «Conversas em Família»

Sabemos que foi a última vez que o fez.

Sem o declarar com todas as letras, Marcelo pretendia que o que se passou nas Caldas da Raínha afinal, não passou de uma insignificante irreflecção, ou talvez ingenuidade de alguns oficiais.

Contudo, no seu Depoimento, Marcelo Caetano dirá sobre o 16 de Março:

«O episódio das Caldas não devia ser subestimado, porque decerto os oficiais que o provocaram contavam com apoio que a pronta reação do governo ou o facto de ter havido precipitação na revolta não tinham permitido actuar. Esses apoios não desarmariam, procurariam fazer a “revolução do remorso” para salvarem os camaradas que não podiam deixar de ser processados e naturalmente punidos por insubordinação.

A revolução que veio efectivamente de surpresa, e conduzida dessa vez com toda a eficiência, em 25 de Abril.»

O «Notícias de Portugal» de 6 de Abril de 1974, publicava na íntegra a conversa.

Algumas breves passagens:

«De todas as infâmias que os adversários da nossa presença em África têm posto a correr contra nós e alguns portugueses infelizmente repetem, confesso que me fere mais a de que defendemos o Ultramar para favorecer os grandes interesses capitalistas.(…) Os soldados que em África se batem, defendem valores indestrutíveis, e uma causa justa. Disso se devem orgulhar e por isso os devemos honrar.
(…) Julgam que posso abandonar esta gente que tão eloquentemente mostrou ser portuguesa e querer continuar a sê-lo?

Não. Enquanto ocupar este lugar não deixarei de ter os ter presentes, aos portugueses do Ultramar, no pensamento e no coração. Procuremos as fórmulas justas e possíveis para a evolução das províncias ultramarinas, de acordo com os progressos que façam e as circunstâncias do Mundo: mas com uma só condição, a de que a África portuguesa continue a ter a alma portuguesa e que nela prossiga a vida e a obra de quantos se honram e orgulham de portugueses ser.»

OLHAR AS CAPAS

Babbitt

Sinclair Lewis

Tradução: Bernardo Ramos

Capa: Luís Duran

Editora Ulisseia, Lisboa, Outubro de 1973

- Bem… - Babbitt atravessou a sala com lentidão, pesadamente, com um aspecto um tanto envelhecido. – Sempre desejei que te formasses. – Tornou a atravessar a sala meditativamente- - Mas nunca… Pelo amor de Deus. Não repitas isto à tua mãe, porque é capaz de me arrancar o pouco cabelo que me resta, mas a verdade é que em toda a minha vida nada executei do que pretendia fazer. Fui vivendo como podia. Como de cem quilómetros que pudesse ter andado, avançasse apenas meio centímetro. Talvez que tu vás mais longe. Não sei. Mas experimento uma que uma satisfação furtiva por ver que sabias o que querias e o que fizeste. Todos procurarão intimidar-te, dominar-te. Manda-os passear! Eu estarei ao teu lado. Aproveita a situação que te oferecem na fábrica, se quiseres, Não te assustes com a família cidade.  Não cidade. Nem contigo mesmo, como eu. Para a frente, meu filho! O mundo é teu!

Os dois «homens da família», com os braços nos ombros um do outro, entraram na sala para defrontar a família, que continuava ameaçadora.

NOTÍCIAS DO CIRCO

O resultado das eleições de 10 de Março já fazia prever que as nossas vidas não seriam nada fáceis, mas estávamos longe de prever a triste farsa que os novos deputados nos proporcionaram no primeiro dia do novo parlamento.

A eleição do presidente da Assembleia da República, que não foi conseguida após três votações, ilustra as dificuldades que o primeiro-ministro indigitado, Luís Montenegro, terá para governar sem apoio parlamentar maioritário.

Se não foi o caos, ficámos perto.

Infantilidades, incompetências, amadorismos, raivas, vinganças, algo mais, rodearam os primeiros dias da nova Assembleia da República.

Hoje, Montenegro nos dirá dos ministros que conseguiu reunir.

Esperemos!

O LORD

Lord que eu fui de Escócias de outra vida

Hoje arrasta por esta a sua decadência

Sem brilho e equipagens.

Milord reduzido a viver de imagens,

Pára às montras de jóias de opulência

Num desejo brumoso – em dúvida iludida…

( – Por isso a minha raiva mal contida,

– Por isso a minha eterna impaciência).

 

Olha as Praças, rodeia-as…

Quem sabe se ele outrora

Teve Praças, como esta, e palácios e colunas –

Longas terras, quintas cheias,

Iates pelo mar fora,

Montanhas e lagos, florestas e dunas…

 

(- Por isso a sensação em mim fincada há tanto

Dum grande património algures haver perdido;

Por isso o meu desejo astral de luxo desmedido –

E a Cor na minha Obra o que ficou do encanto…).

 

Mário Sá-Carneiro

quarta-feira, 27 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


 

Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                        João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 

Ontem, em Olhar as Capas, apresentámos Liberdade, Liberdade de Flávio Rangel e Millpr Fernandes, uma peça de teatro estreada no dia 21 de Abril de 1965, no Rio de Janeiro, numa produção do Grupo Opinião e do Teatro Arena de São Paulo, representada por Paulo Autran, Nara Leão, Oduvaldo Vianna Filho e Tereza Rachel.

A terminar o prefácio do livro escreve Flávio Rangel:

«Nas páginas finais de Les Mots, Jeam-Paul Sartre diz qu durante muito tempo tomou sua pena por uma espada, e que agora conhece sua importância – mas paresar de tudo escreve livros. Eu também tenho minhas dúvidas que um palco seja uma trincheira – mas faço o que posso.

A peça é uma selecção de licros,  de frases, de canções, de acontecimentos, que preetende ser um louvor à Liberdade, como escreveu Cecília Meireles, «essa palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda

Logo nas primeiras cenas da peça, Paulo Autran declama:

«Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a sua vida à humanidade e à paixão existentes  nestes metros de tablado, esse é um homem de teatro.Nós achamos que é preciso cantar (Acordes da Marcha de Quarta-Feira de Cinzas) Agora, mais do que nunca é preciso cantar. Por isso,

“Operário do Canto me apresento”».

Estes são versos de Geir Campos, tirados do poema Da Profissão do Poeta, poeta comunista brasileiro, falecido em Maio de 1999 e utilizados em Liberdade, Liberdade.

A Biblioteca da Casa não tem nenhum livro de Geir Campos.

Uma pesquisa na internet deu para encontrar o poema na íntegra no blogue: https://vermelho.org.br/2015/04/30/geir-campos-da-profissao-do-poeta/

Sempre gostei deste poema, trazê-lo aqui é uma feliz passagem das Viagens Por Abril de hoje.

Sim, é importante cantar.

Aqui fica íntegra o poema Da Profissão do Poeta de Geir Campos, um poeta notável:

 

Da
identificação
profissional
Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e – expresso documento –
a palavra conforme o pensamento.

Do
contrato de
trabalho
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio do meu canto.
Embora a dor ilhada ou coletiva
me doa, antes celebro as coisas belas
que movem o sol e as demais estrelas
– antigos temas que parecem novos
de tão gratos ao meu e aos outros povos.

Da
relação com vários
ofícios
Meu verso tine como prata boa
pesando na confiança dos bancários;
os empregados no comércio bem
sabem como atender aos que encomendo
e recomendo mais do que ninguém;
aos que funcionam em telefonia
com ou sem fio, rádio, a esses também
sei dizer à distância ou de mais perto
a cifra e o texto no minuto certo;
para os músicos profissionais,
sem castigar o timbre das palavras
modulo frases quase musicais;
para os operadores de cinema
meu verso é filme bom que a luz não queima;
trilho também as estradas de ferro
e chego ao coração dos ferroviários
como um trem sempre exato nos horários;
às equipagens das embarcações
de mares ou de lagos ou de rios
meu verso fala doce e grave como
doce e grave é a taboca dos navios;
nos frigoríficos derrete o gelo
da apatia, se é para derretê-lo,
meu canto a circular nas serpentinas;
à boca da escotilha ou nas esquinas
do cais, o meu recado é força viva
guindando a atenção dos homens da estiva;
desço cantando aos subsolos e às minas
onde outros operários desenterram
o minério de suas artérias finas;
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
meu canto ajuda feito um sopro a mais
aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
aos colegas que lidam nos jornais
boas noticias dou e, mais do que isso,
jeito de as repetir e divulgar
quando o patrão quisera ser omisso;
à gente miúda, pronta a ser maior,
passo lições de um magistério puro
e o que é dever escrevo a giz no muro;
para os químicos sei fórmulas novas
que os mártires elaboram nas covas…
e a todos que trabalham vai assim
meu canto sugerindo meio e fim.

Do
horário do
trabalho
Marcadas as minhas horas de ofício,
de dia em sombras pelo chão e à noite
no rútilo diagrama das estrelas,
só quem ama o trabalho sabe vê-las.

Dos
Períodos de
descanso
Seja domingo ou dia de semana,
mais do que as horas neutras do repouso
confortam-me os encargos rotineiros;
meu descanso é confiar nos companheiros.

Do
direito a
férias
Nunca me participam por escrito
ou verbalmente os ócios que mereço,
mas sempre gozo bem o merecido:
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
É quando fio o verso; depois teço.

Da
remuneração das
férias
Em férias tenho a paga de saber
lembrado o verso meu por quem o inspira;
é como se outra mão tangesse a lira

Do
salário
mínimo
Laborando entro os pontos cardinais,
de norte a sul, de leste a oeste, vou
cobrando aqui e ali quanto me basta:
o privilégio de seguir cantando.
(Imposto é cuidar onde e como e quando.)

Do
expediente
noturno

Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.

Da
segurança do
trabalho
Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
canto. Perigo à vista, canto sempre;
e é clara luz e um ar nunca viciado
e sol no inverno e fresca no verão,
meu canto, e sabe a flores se é de flores
e a frutos se é de frutos a estação.
Só não me esforço à luz artificial
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
também quando o ar parece rarefeito
a lira engasga, o verso perde o jeito.

Da
higiene do
trabalho
Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto…
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.

Da
alteração de
contrato
etc.
Meu ofício é cantando revelar
a palavra que serve aos companheiros;
mas se preciso for calar o canto
e em fainas diferentes me aplicar
unindo a outros meu braço prevenido,
mais serviço que houver será servido.

 

Legenda: imagens de Paulo Autran, Tereza Rachel e Nara Leão na representação de «Liberdade. Liberdade»  em Abril de 1965.

OLHAR AS CAPAS

A Estalagem Volante

Tradução: João Carlos Beckert  D’Assunpção

Colecção: Clássicos do Tempo Presente nº 2

Editorial Aster,  Lisboa, Julho de 1959

O mar parecia um duende esverdeado e a tarde já sentia a proximidade mágica da noite quando uma jovem de cabelo escuro, vestido cor de cobre. Drapeado, com arte, caminhava despreocupadamente pelo passeio público de Pebblewick-on-Sea, arrastando uma sombrinha e olhando de vez em quando o mar. Tinha uma razão para olhar instintivamente o horizonte; a mesma razão que já muitas outras mulheres tinham tido ao longo da história do mundo. Mas não havia velas à vista.

CANTIGA, PARTINDO-SE

Senhora, partem tam tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tam tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tãamtristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

 

João Roiz de Castelo-Branco

terça-feira, 26 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


 

       Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


Prosseguia o quotidiano dos nossos governantes.

Sua Excelência o Presidente da República inaugurava, no dia 23 de Março, as novas instalações do Hospital Distrital de Cascais.

Por sua vez, Sua Excelência o presidente do conselho recebia, no dia 24 de Março, os primeiros corpos gerentes da nova Associação Nacional da Juventude, eleitos na assembleia geral efectuada na Caparica, que lhe foram apresentar cumprimentos e convidá-lo para inaugurar oportunamente a sede da organização.

Após o 25 de Abril. que terá acontecido a estes jovens?

E em que se converteu a sede da Associação nacional de Juventude?

Por outro lado, no Cinéfilo de 23 de Março de 1974 há uma carta-resposta de Eduardo Prado Coelho a Vasco Pulido Valente:

«É aliás fácil estar de acordo com as ideias do Vasco, porque ele não tem muitas».

No Plenário recomeçou o julgamento dos réus acusados de pertencerem à ARA. O escritor Carlos Coutinho fala nos motivos que o levaram a aderir ao Partido Comunista, o que leva o juiz a interrompê-lo. Dando-lhe dez minutos para responder concretamente às perguntas.

É marcada para Setembro a data de construção da Barragem do Alqueva.

OLHAR AS CAPAS


Liberdade, Liberdade

Flávio Rangel e Millôr Fernandes

Capa: Marcos Vasconcelos

Editôra Civilização Brasileira, Rio de Janeiro 1965

Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a sua vida à humanidade e à paixão existentes  nestes metros de tablado, esse é um homem de teatro.

O QUÉ QUE VAI NO PIOLHO?

 


Há cenas de filmes que nos perseguem pela vida.

Como por exemplo aquela de um ainda desconhecido Jack Nicholson a sair da prisão no Easy Rider. Era um cliente habitual da casa pelas suas costumadas bebedeiras.

Wyatt e Billy são presos por desfilarem de mota, sem terem licença para tal, no meio de uma parada do Carnaval de New Orleans. Batem com os costados na mesma cela onde está o Dr. Hausen.

Hausen é um advogado, filho de boas famílias e a quem, pela manhã, os policias levam uma aspirina para aliviar a ressaca.

Billy - Achas que consegues tirar-nos daqui sem problemas?


Hausen: Se não mataram ninguém, não há problema. Desde que não tenha sido um branco.

Por 25 dólares são postos em liberdade. 

Já na rua, Hausen saca, do bolso do casaquinho branco, uma garrafa de whisky.

- Isto é para começar o dia, amigos.

Ergue a garrafa aos céus e grita:

 - Ao velho D.H. Lawrence.

Bebido o gole de whisky, faz um esgar trágico de sentir o mundo a desabar em cima, e bate com o braço no corpo gritando “nique, nique, nique”, dando o informe aos amigos que se trata de um grito índio.

E arrancam os três de mota ao som de «If you want to be a bird» dos The Holy Modal Rounders.

BLOGUEANDO POR AÍ


Estamos em 31 de Março de 2019 e Manuel S. Fonseca na sua Página Negra saúda a Primavera:

«A Primavera é como a primeira luz que rompe a escuridão da sala de cinema. Enche-nos da pior das volúpias, a volúpia infantil. Às 11 da manhã já o Chiado, já a Rua de Santa Catarina lavam os olhos nas nuas e frescas pernas das raparigas, nos decotes que deixam fugir a redonda carne em direcção ao sol. É Primavera e decoto-me eu também: segue-se a cândida exposição das coisas de que, diletante, gosto muito e sem vergonha.

Gosto:

  1. Da primeira saia que o cinema levantou para, mostrando a perna, parar um carro e conseguir uma boleia. Era a perna de Claudette Colbert em “It Happened One Night”.
  2. Do teu decote.
  3. Da dúbia adolescência da perna de Evvie, entalada entre o desejo de um branco e o desejo de um negro, em “La Joven”, o filme americano de Luis Buñuel.
  4. De acácias e jacarandás, do cheiro do jasmim finalmente em flor.
  5. Do fumo de uma sórdida esquadra de polícia de “Basic Instinct”, em que as cruzadas e descruzadas pernas de Sharon Stone são o pêndulo que nos troca os olhos.
  6. De imaginar a espavorida fuga dos inocentes anjinhos nos momentos de volúpia de Deus.
  7. Da alva pureza dos shorts de Jean Seberg em “Bonjour Tristesse” e da indizível convulsão que, querendo desabrochar, neles se esconde.
  8. De um dry martini ao fim de tarde, no Shutters on the Beach, em Santa Monica.
  9. Da miniatura de um Simca vermelho descapotável com que Curd Jürgens faz Brigitte Bardot içar do chão o simétrico e irretocável rabo que dourava ao sol.
  10. De golos de bandeira ao domingo, numa tarde de sol.
  11. Do vestido às riscas de Anna Karina a fazer pendant com os estofos de couro vermelhos e creme do descapotável em que foge com Pierrot. Ele, louco. Ela com a boca cheia de liberdade e de Rimbaud.
  12. De risos e beijos.
  13. Dos olhares de quatro mulheres para o tronco nu de William Holden que, em “Picnic”, de Joshua Logan, queima o lixo no quintal, “naked as an Indian”. Olhares que mordem, olhares de mulheres bonitas cansadas de serem apenas olhadas, que foi o que, quando vi o filme, ouvi Kim Novak dizer.
  14. Sim, gosto das pernas das raparigas quando chega a Primavera.»

Legenda: Anna Karina e Jean Paul Belmondo no descapotável em Pierrot Le Fou.

ALGO SEM NOME

Algo que não tem nome

e  que nunca o  terá

procura talvez mover estas palavras

para que sejam portadoras de clemência.

Se nelas florescesse a rosa do vazio

ou o incêndio que fertiliza o grito

ou a suave tempestade das artérias

ou se um relâmpago calcinado na sua trajectória

lhe desse a mais evidente claridade.

Uma ferida não cessa no silêncio branco

e não ascende à boca do poema.

Se a água aqui se fizesse arquitectura

e a sede o fogo a dança o infortúnio

se reunissem num só pulsar de sílabas

e num leve artifício se abrisse a sombra nua!

António Ramos Rosa de Facilidade do Ar em  Obra Poética Vol. II

segunda-feira, 25 de março de 2024


 

Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                       João Bénard da Costa

 

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.

 

Os militares do Movimento dos Capitães, agora que sabem que o golpe de estado ocorrerá entre 20 e 27 de Abril, continuam as suas contantes reuniões, Américo Tomás, continua a inaugurar chafarizes e afins, os ministros da ditadura fazem as suas visitas, recebem individualidades diversas, pouco há referir e entende-se que é oportuno voltar à música e a um disco em que Manuel Freire utiliza um poema de António Gedeão. O poeta escreverá nas suas Memórias:

«Eu tenho comigo trinta discos onde foram gravadas canções, feitas por diversos cantores de maior ou menor fama. Sobre poemas meus. Desses trinta discos dois deles foram-me oferecidos pelos seus criadores. Os restantes vinte e oito (e não estou em erro) foram comprados por mim quando, por acaso, os fui encontrando nas montras das casas de discos por onde passava.

O que mais se notabilizou nestas andanças foi o Manuel Freire, um rapaz com voz agradável e talento musical. Quando depois o conheci, e conversei com ele, disse-me que ficara muito impressionado quando leu os meus poemas publicados, pelo seu sentido musical. Particularmente leu a Pedra Filosofal e, espantosamente, impelido pelo ritmo do texto, começara a lê-la e a trauteá-la. Daí lhe nasceu, de imediato a música que tão popular se tornou. Houve quem dissesse no jornal que a Pedra Filosofal marcara toda uma geração.

Tenho comigo cinco discos do Manuel Freire onde ele canta, com música sua, não só a “Pedra Filosofal” como também o “Poema da malta das naus”. Devo-lhe muito. Suponho que foi pela sua actuação que a minha poesia conseguiu tão grande êxito generalizado.»

Quando, em 1969, Manuel Freire aparece no Zip-Zip, a cantar Pedra Filosofal de António Gedeão, não era totalmente um desconhecido. Era um companheiro de viagem, dos que, país fora, andavam por sociedades recreativas a dizer, a quem os quisesse ouvir, que haveria de chegar o dia das surpresas.

Claro que a passagem pelo Zip-Zip projecta Manuel Freire para um outro tipo de público, e muito mais gente ficará, então, a saber que o sonho comanda a vida, que o mundo pula e avança.

Manuel Freire sobre a poesia de António Gedeão: 

«A poesia dele tem um ritmo próprio. Para já, é extremamente clara. Não é daqueles poetas que a gente tem de ler o poema três vezes para perceber o que eles querem dizer. Isso não os torna nem piores nem melhores, torna-os diferentes. O Gedeão não: lê-se à primeira e percebe-se o que quer dizer. E como tem um ritmo, torna mais fácil musicar as coisas. De maneira que foi isso que eu descobri.»

No topo , está o velhinho single, da Biblioteca da Casa,  do Manuel Freire com a Pedra Filosofal, Edição «ZIP-ZIP», com arranjos e supervisão de Thilo Ktasmann , gravado na Nacional Flmes, em 1970, com som de Heliodoro Pires.

OLHAR AS CAPAS


Regressar Para Quê?

Victor de Sá

Capa: Fernando Felgueiras

Colecção Diálogo nº 9

Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 1970

É por isso que não pactuo, que não aceito sequer a conivência do Silêncio. É precisos sacudir esta sociedade de auto-suficientes que se consideram a viver no melhor dos mundos possíveis – expressão de inconsciência e de irresponsabilidade contra a qual a juventude justamente se revolta.

O RAMO DA CEREJEIRA EM FLOR

O ramo da cerejeira em flor
concede o seu perfume
a quem o quebrou.

Fukuda Chiyo-ni 

domingo, 24 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                        João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.



Neste 24 de Março de 1974 regressamos ao livro de Dinis de Almeida Origens e Evolução do Movimento de Capitães,e, por mais nada digno de nota a assinalar, copiamos o que o autor deixou para a História:

«Nova reunião entre os elementos da Comissão Coordenadora que voltou a acentuar a determinação de refazer o plano de operações de 12 de Março.

Otelo Saraiva de Carvalho, presente na reunião anterior, marcou então, em princípio, o golpe para a semana de 20 a 27 de Abril.»

Em nota de rodapé, Dinis de Almeida lembra que «também o período entre 20 a 29 e 29 de Abril ficou no ar, alvitre de um dos presentes».

OLHAR AS CAPAS


Histórias de Lamento e Regozijo

António Victorino de Almeida

Parceria A. M. Pereira, Lisboa, 1968

Um dia entrei em casa e vi um indivíduo , que era eu, sentadoi numa cadeira a fumar tranquilamente

Como é lógico, fiquei espantadíssimo, pois não fumo…

Um pouco a medo dirigi-me ao outro e perguntei:

- Que faz você aqui?...

O outro não respondeu. Insisti. Insistiu no silêncio. E então compreendi: o outro não respondia porque não estava lá nenhum outro. Se lá estava alguém, esse alguém não era outro – era eu!

Perguntei então:

- Estou a fumar?

Respondi imediatamente:

-Estou…

- Mas eu não fumo! – adverti

- Ah não? – retorqui por minha vez. – Pois então se eu não fumo… vou deixar de fumar!

E nesse mesmo instante deitei o cigarro fora e voltei a entrar em mim.

sábado, 23 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


              Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                       João Bénard da Costa

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


Hoje, esta viagem começa com um toque de ordem pessoal.

Apesar de diversas tentativas, não consegui bilhete para o espectáculo de Patxi Andión no Coliseu no dia 23 de Março de 1974.

A verdade: o acto de cantar é um acto que responsabiliza a pessoa que canta e os que a escutam.

Isso, e algo mais, muito mais, era Patxi Andion, o mestre que cantava com todo o mar por trás.-

Tentou cantar duas vezes em Portugal mas puseram-no na fronteira.

Mas às três foi de vez. O semanário Cinéfilo, na secção “Sete Dias da Semana”, entre outras coisas tão abonatórias como justas, dizia que era um espectáculo, pela qualidade certa, a não perder.

Uma semana depois, também no Cinéfilo, Eduardo Guerra Carneiro, escrevia sobre o espectáculo:

«Quatro mil estavam no Coliseu. Silêncio, luzes e palmas. Toda a força possível: verde que te quiero verde. Estavam todos lá. Com ele. Assim, tudo poderia estar definitivamente em tudo. Todos estarmos em tudo e todos sermos afinal tudo, maneira de dizer: todos com todos. O que sentimos ao sentirmos tudo. Sentimento total.
A palavra exacta, minuto a minuto. Não perder o sentido, a exacta procura de todos, de tudo. A calma violência da total aventura: ondas e não uniforme paisagem. Patxi junto ao mar, a pequena aldeia, a mesa de madeira, o copo de vinho tinto, o sol, a tarde, o domingo a escorrer, como azeite, sobre os homens, as coisas, as palavras. Palavras claras de Patxi que podem corresponder a um copo que se oferece, a uma fatia de pão que se recebe.
Espectáculo? Total Participação? Comoção. Plenitude, talvez. O pão a crescer na terra, o corpo a corpo da poesia e da canção. Um homem simples frente a 4 mil portugueses.»

O escritor César Oliveira também esteve nessa noite no Coliseu, e deixou registo no seu livro de memórias Os Anos Decisivos:

«Este clima que andava no ar, este “sentir na pele” de que alguma coisa teria de acontecer, a seguir ao fracasso do 16 de Março, foi exemplarmente experimentado num espectáculo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, com o cantor basco Patxi AndionA sala estava, literalmente, a abarrotar. Agentes da PIDE/DGS circulavam na sala, nos corredores, na rua do Coliseu. Perto, por detrás do Teatro Nacional, carrinhas da Polícia de Choque. Patxi Andión percebeu e sentiu o clima electrizante que se viveu e “puxou” e tornou a “puxar” pelo público. Ao cantar “El Maestro” – “al explicar una guerra/siempre se muestra remiso/explicando claramente/quien venció y fue vencido” – praticamente toda a vasta sala, desde a plateia aos camarotes, balcão e geral, estava de pé, punhos erguidos, soltando-se algumas vozes em “Viva a Liberdade! Abaixo o Fascismo!” Foi, sem sombra de dúvidas para qualquer espécie, um dos momentos mais altos e com uma carga dramática e épica mais intensa que até hoje pude ver num espectáculo musical.”

Patxi Andion morreu em 19 de Dezembro de 

No jornal Público de 23 de Março de 1984, fazia-se a evocação do mesmo dia, dez anos atrás. A coordenação pertencia ao jornalista Cesário Borga que deu a palavra ao radialista e jornalista Adelino Gomes:

«Um oficial procura-me na “Seara Nova”, Alguém lhe dissera que eu tinha trabalhado na RTP e que era um homem ligado à rádio. A pergunta veio directa: “É capaz de me fazer o croquis das instalações da Televisão do Lumiar»”. Fiz um sumário das instalações e o oficial instou-me para lhe dar pormenores sobre os polícias que lá prestavam serviço e as armas que usavam, as horas do fecho da e missão, o número indispensável para pôr uma emissão, no ar, etc., etc. Foi quando lhe perguntei para que era aquilo tudo. Prontamente o oficial respondeu: “vamos dar um golpe de estado dentro de dias e precisamos de ocupar a Televisão”.

OLHAR AS CAPAS

Sancirilo

A.Pires Cabral

Capa: Antunes

Círculo de Leitores, Dezembro de 1983

A república de Sancirilo não existe. Tão-pouco existiu jamais, do conhecimento do autor, santo algum chamado Cirilo, para além dos três de que falam as hagiologias. Assim como não existiu realmente nenhum Amado Mestre, Elias Brósio, Judas Ormin, Esdras Harpix e assim por diante.

Mas têm existido muitas vezes ditadores cadaverosos, surdas e  sujas lutas pela sua sucessão do político e outras aberrações de que esta história fala, numa tentativa mais para que o mundo não esqueça.

Além, naturalmente, de homens que, mais tarde ou mais cedo, aprendem a soltar o pensamento.

sexta-feira, 22 de março de 2024

VIAGENS POR ABRIL


  

          Este não é o dia seguinte do dia que foi ontem.

                                                   João Bénard da Costa

 

Será um desfilar de histórias, de opiniões, de livros, de discos, poemas, canções, fotografias, figuras e figurões, que irão aparecendo sem obedecer a qualquer especificação do dia, mês, ano em que aconteceram.


Permitam que a música e as canções continuem a ocupar estas Viagens por Abril.

Hoje, aqui se traz Fernando Lopes Graça e Fiama Hasse Pais Brandão. Tal como o José Gomes Ferreira dizia, nos seus poemas para as Heróicas do Graça, «até mortos vão ao nosso lado.»

Naqueles tempos em que se abriam janelas para que as correntes de ar pudessem entrar, batessem na cara, juntávamo-nos ao redor de discos e livros, trocávamos impressões, experiências e admitíamos aquele saber que guardamos nas dobras improváveis do tempo, que era possível a chegada de um dia claro. A isto se poderia chamar a memória da esperança. Era disto que se faziam os dias daqueles tempos.

"Lisboa tem suas barcas agora lavradas de armas".

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Quando já depois de, ouvidos os discos, muito conversados, razoavelmente bebidos, o Zé Leal lembrava sempre que ficava na memória um som. Um som simples das ausências, das mãos que se fizeram abertas. Ficava também o silêncio. Depois era a debandada. A manhã a anunciar-se, era o começo de mais um dia de trabalho.

"Para a próxima quem é que trás os discos?”

Hoje já não servem as palavras com que dantes se faziam as conversas entre nós. Gastas as palavras, outros os olhares, diferentes os interesses.

Este EP de 33 rpm é o 4º Caderno de composições de Fernando Lopes Graça “compostas em estilo singelo para recreação da gente nova portuguesa – Oito Canções das Barcas Novas”.

Os poemas são de Fiama Hasse Pais Brandão, cantados por Celeste Lino, Manuel Pico, acompanhados, ao piano, por Olga Prats.

O disco, como habitualmente, não indica a data de gravação. Talvez 1972. O preço, esse, pode ver-se no canto superior esquerdo: 73 escudos e 50 centavos qualquer coisa, ao cambio de hoje, como 0,3675 euros. Mas façam contas e acreditem que aqueles 73,50 escudos obrigavam a sacrifícios.

O texto de apresentação, incluído no disco, é de Mário Vieira de Carvalho, escrito num tempo em que era crítico musical e acreditava que existiam amanhãs para serem cantado

Os comandos militares informam que um capitão morreu na Guiné e um alferes em Moçambique, ambos “por acidente de viação”, e que cinco outros militares morrerem em combate, também nestas duas províncias.

Num serviço da ANI para os jornais lia-se que “ao contrário do que tem sido noticiado no estrangeiro, não foi expulsa de Moçambique a Irmã Maria del Cali, apenas se verificou o facto de não haver sido renovado o visto de residência. Um informador oficial esclarece que a freira italiana subscrevera uma carta que criticava a acção do Bispo de Tete e certo documento capturado pelas forças portuguesas a um terrorista, indicava-a como uma pessoa ideal para ser contactada pela FRELIMO.”

Em informação, assinada pelo Capitão Correia de Barros, para os jornais, os serviços de censura determinavam: “Em títulos ou subtítulos dos casos passados em Moçambique não pôr: “padres acusados de traição” – como fez “A Capital”.

Um comunicado do Comando-Chefe das Forças Armadas informava que a Srª D. Cecília Supico Pinto, presidente do Movimento Nacional Feminino, continuava a sua visita a zonas no interior da Guiné.

O OUTRO LADO DAS CAPAS


 

Leitor compulsivo que quase sou, terei comprado livros pelos autores em si, por capas, por começos, por finais, por uma qualquer frase lida no folhear de um livro nos escaparates das livrarias.

Há meses comprei um livro pela sua contra capa.

Desconhecia, por completo, o seu autor

Chama-se Lars Gustafsson  e o livro, já aqui colocado em Olhar as Capas, chama-se A Morte de um Apicultor.

Esta é a frase que me chamou a atenção: «Recomeçamos, não nos rendemos.»

Um professor de escola Primária que se chama Lars Lennart Westin, conta a sua história perante a eventualidade da sua morte.

Sabe que tem um cancro, mas recusa-se a ler a carta que o Hospital lhe há-de enviar, tão pouco sabe se essa carta confirma, ou não,  o diagnóstico.

Vagarosamente, sabe que não irá viver até ao final da primavera seguinte.

«Quando a carta do hospital regional chegou, pu-la de lado e fui dar um passeio. Sentia-me perfeitamente tranquilo, enquanto contemplava as árvores, já sem folhas, ao longo do caminho. Adoro estes ramos despidos contra o céu cinzento, cor de chumbo. Parecem letras de uma língua desconhecida, que tentam dizer algo. Ou a carta anuncia-me que não se trata de nada de grave. Ou vem dizer-me que tenho um cancro e que vou morrer. O mais provável, claro, é o cancro.»

(Pág. 28)

«Se esta carta contém a minha morte,  recuso-a.

Não devemos querer nada com a morte. Tive a sorte de aprender isto muito cedo, e é algo que me tem sido útil ao longo da vida.»

(Pág. 31)

«Quando a carta chegou finalmente, não a bri logo. Decidi dar um longo passeio com o cão e refletir sobre o caso. A paisagem era a mesma, muito cinzenta, árvores nuas com patéticos ramos cor de chumbo. Uma espessa camada de gelo com neve húmida sobre o lago; enfim, fevereiro.

Fiquei bastante tempo a olhar para o envelope, a apalpar a sua espessura, a avaliar o seu peso, até que, de repente, começou a fazer muito frio na cozinha, porque a salamandra estava apagada por falta de lenha. Quando finalmente levantei os olhos, já escurecia. A tarde já ia bem adiantada. Uma daquela tardes típicas de fevereiro em que anoitece pelas quatro da tarde.

Acabei por ir buscar lenha e pus a salamandra a funcionar.

Utilizei a carta para acender o lume.»

(Pág. 35)

«Como queimei essa maldita carta tenho de assumir sozinho toda a situação. Terei de lutar só, terei a minha própria morte.»

(Pág.  84)

«No entanto, começo a perguntar-me em que me fui meter ao queimar, por exemplo, a carta do laboratório do hospital sem a abrir.»

(Pág, 105).

 

Perante a morte faltam sempre palavras.

«Morrer era agora minha liberdade, e eu tinha a vida inteira para executá-la

pormenorizadamente.»

Escreveu, um dia, Herberto Helder.

Sabemos: todos vamos morrer,  e em cada dia vamos morrendo um bocadinho.

 Há uma frase  de Vitor Cunha Rego, que foi, entre outras coisas, director do Diário de Notícias:

«A pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida.».

E, neste livro, é o que faz o seu autor.

Enquanto prepara a morte, haverá momentos em que talvez pense que os mortos só sabem uma coisa: é melhor estar vivo

Palavras finais deste curioso e muito interessante  livro:

«Já estamos na segunda semana de maio e, no entanto, hoje neva em todod a  Vastmanland. Uma ambulância vem buscar-me às quatro da tarde. Espero que não haja muito gelo na estrada.

Podemos esperar que não haja nenhum acidente.

Podemos sempre esperar».

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Destaque de uma frase de José Saramago no Público de  20 de Junho de 2010.

OLHAR AS CAPAS


 

A Morte de Um Apicultor

Lars Gustafsson

Tradução: Afonso Cruz e Mélanie Wolfram

Capa: Vera Espinha

Editorial Presença, Lisboa, Fevereiro de 2022

Este outono, devia ter tratado de uma série de coisas nas colmeias: renovar os suportes de madeira, fazer entradas novas, reparar os caixilhos, colocar material isolante. Mas, sem que perceba porquê, acabei por não tratar de nada. Não consigo mesmo compreender a razão disso. Devo ter estado imensamente apático e passivo durante este outono. Felizmente, este inverno dá todos os indícios de vir a ser inusitadamente quente, a avaliar pelo tempo que temos agora, no final de janeiro. Chove durante dias seguidos, e eu fico  na cama mais tempo do que é costume – aproveitando a escuridão do inverno -, apenas pelo prazer de ouvir a chuva a bater no telhado.

HORA H

A Primavera cheira a laranjas.

(Há umas granadas de mão, redondas e pequenas, a que chamam laranjas.)

O cheiro das laranjas enche a noite luarenta de mistérios.

(Dizem que as noites de luar são as melhores para bombardeamentos aéreos.)

António Gedeão de Linhas de Força em Obra Completa