quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

SARAMAGUEANDO


José Saramago não gostava de bandeiras.

Na longa conversa que manteve com João Céu e Silva, lamentava o espectáculo de os portugueses, por causa do Euro 2004, seguindo uma ideia provinciana de Scolari, terem colocado bandeiras nacionais nas janelas e engalanado as ruas – e o patriotismo do portuguesinho não é assim tanto. Era profundamente ridículo essa quantidade de bandeiras. É aquilo a que eu chamo fogos de palha, que ardem com muita violência, queimam-se, esgotam-se e reduzem-se a cinzas em pouco.

Referia mesmo que, no seu livro Intermitências da Morte, ridicularizara o facto.

Lembremos, então, o que vem na pág. 26 de As Intermitências da Morte:

Um dia, uma senhora em estado de viúva recente, não encontrando outra maneira de manifestar a nova felicidade que lhe inundava o ser, e se bem que com a ligeira dor de saber que, não morrendo ela, nunca mais voltaria a ver o pranteado defunto, lembrou-se de pendurar para a rua, na sacada florida da sua casa de jantar, a bandeira nacional. Foi o que se costuma chamar meu dito, meu feito. Em menos de quarenta e oito horas o embandeiramento alastrou a todo o país, as cores e os símbolos da bandeira tomaram conta da paisagem, com maior visibilidade nas cidades pela evidente razão de 3estarem mais beneficiadas de varandas e janelas que o campo. Era impossível resistir a um tal fervor patriótico, sobretudo porque, vindas não se sabia donde, haviam começado a difundir-se certas declarações inquietantes, para não dizer francamente ameaçadoras, como fosse,, por exemplo, Quem não puder a imortal bandeira da pátria à janela da sal casa, não merece estar vivo, Aqueles que não andam com a bandeira nacional bem à vista é porque se venderam à morte, Junte-se a nós, seja patriota, compre uma bandeira, Compre outra, Compre mais outra, Abaixo os inimigos da vida, o que lhes vale a eles é já não haver morte. As rua eram um autêntico arraial de insígnias desfraldadas, batidas pelo vento, se este soprava, ou, quando não, um ventilador eléctrico colocado a jeito


fazia-lhe as vezes, e se a potência do aparelho não era bastante para que o estandarte virilmente drapejasse, obrigando-o a dar aqueles estalos de chicote que tanto exaltam os espíritos marciais, ao menos fazia com que ondulassem honrosamente as cores da pátria. Alguma raras pessoas, à boca pequena, murmuravam que aquilo era um exagero, um despropósito, que mais tarde ou mis cedo não haveria outro remédio que retirar aquele bandeiral todo, e quanto mais cedo melhor o fizermos, melhor, porque da mesma maneira que demasiado açúcar no pudim dá cabo do paladar e prejudica o processo digestivo, também o normal e mais do que respeito pelos emblemas patrióticos acabará por converter-se em chacota se permitirmos que descambe em autênticos atentados contra o pudor, como os exibicionistas de gabardina de execrada memória. Além disso, diziam, as bandeiras estão aí para celebrar o facto de que a morte deixou de matar, então de duas uma, os as retiramos antes de que com a fartura comecemos a embirrar com os símbolos da pátria, ou vamos levar o resto da vida, isto é, a eternidade,, sim, dizemos bem, a eternidade, a mudá-los de cada vez que os apodreça a chuva, que o vento os esfarrape ou que o sol lhes coma o colorido. Eram pouquíssimas as pessoas que tinham a coragem de pôr assim, publicamente, o dedo na ferida, e um pobre homem houve que teve de pagar a antipatriótico desabafo com uma tareia que, se não lhe acabou ali mesmo com a triste vida, foi só porque a morte havia deixado de operar neste país desde o princípio do ano.

Sem comentários: