quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

SARAMAGUEANDO


Os últimos números conhecidos, revelavam que, nas cheias em Moçambique este ano, já morreram 38 pessoas, 150 mil encontram-se desalojadas, desconhecendo-se o número de pessoas desparecidas.

As cheias em Moçambique são sempre trágicas, mas as do ano 2000 foram uma catástrofe: elevadíssimos prejuízos e a morte de 700 pessoas.

O escritor Mia Couto, num texto, a que chamou Perdida a Colheita de Esperança, publicado no Público de 29 de Fevereiro de 2000, descrevia os fatídicos dias:

Olhando os lugares onde estive há menos de um mês, agora completamente submersos, me vem um sentimento que já não é só de tristeza. Um enorme cansaço. Uma desistência da alma, dentro de mim. A mágoa profunda de ver perdida a colheita de esperança que os moçambicanos semearam depois da guerra. Esta gente – aos milhares – que espera em cima do último telhado está desenhando outros deuses: os helicópteros que descem dos céus para os salvar. Vejo as imagens na Televisão e não tenho outra defesa contra a lágrima. Como uma erva já sem raiz, a mãe com seu filho nas costas vai subindo nos céus. Aos poucos é engolida pela barriga da máquina voadora. Lá em baixo, tudo é rio, torrente e lama. A morte servindo-se dos mesmos materiais da vida.
Sempre lutei para que a minha terra dispensasse a humilhação de ter que pedir. Mais triste que pedir, porém, é ter mesmo que pedir. A dimensão desta tragédia ultrapassa o quanto Moçambique pode responder por si mesmo. Desta feita, eu também peço. Não por mim, mas pela gente que necessita recomeçar do nada que lhes restou.

José Saramago respondeu, deste modo, ao apelo.

Meu caro Mia Couto.

As palavras sobram. Ou todas seriam insuficientes para denunciar o vergonhoso comportamento da mal chamada comunidade internacional. Não faltam helicópteros às guerras, nem aviões, nem comida, nem dinheiro. Havendo gente para morrer nelas, às guerras nunca faltou nada. Mas o auxílio a Moçambique vai a conta-gotas, como se esses desastres e calamidades fossem coisas doutro planeta. Ouço dizer que a África do Sul exige contrapartidas pelos helicópteros que por aí andam a salvar vidas. Prefiro pensar que não é verdade, que só por pura e humana generosidade foram mandados. Quanto a Portugal, não sei, vivo longe. Gostaria de imaginar que os meus compatriotas, depois de tanto terem gritado e chorado por Timor, andam agora, de norte a Sul, a recolher auxílios para Moçambique. Alguns andarão, não o duvido, mas a colectividade nacional, no seu conjunto, nunca foi muito de abrir os cordões à bolsa. Prefere extrair de lá o lencinho para secar a lágrima fácil em que se especializou.
Enfim, diz-me o número de uma conta bancária de aí, para onde eu possa transferir algum dinheiro, Confio em ti para que não se perca pelo caminho.

Um grande e fraternal abraço,

José Saramago, Lanzarote.

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