segunda-feira, 18 de maio de 2015

ANTIMUSA




o  poema
encontrei-o na rua.
Suportei-o nas coisas desiguais
O merceeiro punha maçãs à porta mas
os meninos vendiam pentes.
Talvez o meu poema tenha morado
nos pés descalços
por isso trago vozes pó cansaço
trago um poema sujo
com cheiro a lenha e a caminhos
trago um poema que quero agreste
e malcriado.

O poema encontrei-o nas flores
O  jardineiro cantava baixo.
As palavras que trago talvez
ele as dissesse antes de mim
por isso o meu poema se diz terra
vem suado    dorido
e com orvalho colado aos ombros

O poema colhi-o nos outros
havia homens que falavam de coisas belas
há daquelas palavras que só se dizem
de mão em mão.
Foi daí que nasceram
todas as aves do meu poema.

Talvez os barcos também trouxessem versos
algum dia
mas foi com eles que aprendi
os espaços vazios.
Os homens partem de madrugada
foi por isso
que enchi o meu poema de comboios
e o fechei em volta
A rima, desisti-a    no passeio
um mendigo tocava
Foi então que fiquei com um poema cego.
Um poema de mãos fechadas

Há quem saiba de angústias e de luas.
Por mim,
Trago-te os dias por que passo
nada mais.

Hélia Correia

(1969)

legenda: fotografia de Vivian Maier

Sem comentários: