sábado, 29 de abril de 2017

ENTÃO REGRESSO



Estávamos em Maio, o mês das flores. Mas em Nova Iorque não há fragrância de flores, há o cheiro dos homens que correm atrás da vida e há o cheiro do cimento que lhes absorve as horas e as ideias, por causa do dinheiro. Naquele momento, eu era um dos poucos novaiorquinos que não corria atrás de coisa alguma: dinheiro, poder, mulheres ou a juventude perdida. E se não fosse a circunstância de ter contra mim o Sindicato do Crime e a Mafia, podia considerar-me do lado de fora da maior competição fratricida do mundo, uma espécie de Jogos Olímpicos do Dólar. Ou uma peça chamada Estados Unidos da América, com milhões de figurantes seguindo a bandeira do Dólar, com dólares desenhados nos olhos, com dólares escondidos no coração, com dólares atravessados na garganta, dias muito dinâmicos e noites muito cansadas, publicidade, bairros de lata e arranha-céus, publicidade, combates de boxe e avenidas a «néon», publicidade, o eterno problema dos negros e «compre hoje mesmo o seu frigorífico», publicidade, mais material de guerra e «sorria como William Holden», publicidade, comprimidos para lembrar e comprimidos para esquecer, publicidade, e a manhã que nasce e tudo recomeça.
O meu último contrato rendera-me bom dinheiro. Partira para Roma seis meses antes. Parto sempre para Roma quando não me sinto seguro. Revejo a Capela Sistina, as garotas da Praça de Espanha, vejo o último Fellini ou o último Rosselini, compro livros que dificilmente encontro nos Estados Unidos, e espero que Johnny Arteleso, meu companheiro de infância e meu único verdadeiro amigo, me diga de Nova Iorque que o tempo está sereno. Então regresso.


Legenda: pormenor da capa feita por Antunes para a edição do Círculo de Leitores de Mulhere Arma Com Guitarra Espanhola.

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