quarta-feira, 5 de abril de 2017

VOU-TE CONTAR UMA HISTÓRIA


Maria do Rosário Pedreira revelou, há dias, no seu blogue, «Horas Extraordinárias» que, andando à procura do poema «Ceguinha» de João de Deus foi ter a um blogue com uma extensa lista de obras literárias relacionados com o problema da cegueira.

Inevitavelmente, está nessa lista o Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago - «se podes olhar, vê. Se podes ver, repara» – e também A Nau de Quixibá de Alexandre Pinheiro Torres, um livro imperdível.

Curiosamente, o texto seleccionado do livro de Pinheiro Torres, é um dos muitos pedaços que do livro sublinhei.

 Um tanto longo e que aguardava disponibilidade para ser transcrito.

São páginas muito bonitas.

Aproveito a boleia do blogue «Sobre a Deficiência Visual» e transcrevo-as.

Deixo ainda uma citação de Jorge Luís Borges que um viajante do «Horas Extraordinárias» deixou na caixa de comentários:

«Para a tarefa de um artista, a cegueira não é necessariamente uma limitação. Ela pode ser um instrumento».

A blogosfera, tirando alguma – muita! – javardice que por lá campeia, oferece-nos pérolas que nos fazem sentir gente.

Esticou o braço para o seu lado esquerdo donde o pobre do sol, moribundo, ainda fulgurava nas suas barbatanas rápidas,
«Vou-te contar uma história. Havia aqui um homem quase cego desde nascença. Tanto lhe minguava a luz que, para ele, quem lhe falasse surgia-lhe como uma mancha equilibrada no alto de um varapau de palavras. Antes de o conhecer não acreditava que um cego pudesse ter confiança fosse no que fosse. Sempre dissera a mim próprio: "os cegos são as pessoas mais inseguras do mundo". com os anos descobri que me enganava. O cego de que te falo nunca tivera qualquer receio em atravessar as ruas de S. Tomé. Caramba!, sempre há algum tráfego! Mas se fosse forçado a cruzar uma das ruas da Baixa de Lisboa, caso estivesse a elas afeito, não seria por se lhe deparar mais movimento que se mostraria mais aflito. Possuía, desde o mais fundo de si, uma confiança absoluta no poder da bengala às listas brancas e negras. Um dia perguntei-lhe: "Você não tem medo dos perigos?" Voltou para mim os olhos parados (eu seria apenas mais uma mancha, apenas com voz diferente), e contestou-me: "Que perigos?" O homenzinho mostrava-se surpreendidíssimo. "Ser cego", disse-me, "também tem as suas vantagens. Não posso ter medo daquilo que não vejo." Era tão óbvia a minha incompreensão do mundo do cego que insisti: "Você não tem, por exemplo, medo das alturas?" Ele riu-se: "Oh!, meu bom senhor!, então vossemecê julga que eu vejo as alturas?" Olha, meu filho, fiquei com cara de parvo, mas, como ele não podia ver-me a cara de parvo, aguentei firme.»
Aqui foi acometido por um prolongado ataque de tosse: "mas que grande chatice!". Entrelaçou os dedos das mãos (notei que a aliança lhe estava larguíssima), e deteve-se à tona de um sorriso que realmente era só água:
«E depois?», perguntei-lhe.
Queria animá-lo a mudar de assunto: ressuscitar o sol.
«Bom. Um dia soube-se que vinha de Luanda um oftalmologista de fama passar aqui umas férias a casa de um irmão, aliás primo do Governador. Houve gente aí que aproveitou logo para consultá-lo, até eu, mas alguém falou-lhe do cego, porque o oftalmologista examinou-o e desde logo afirmou que aquele era um dos casos de fácil cura. O espanto é que o cego andava como doido. Perguntava a toda a gente: «Que vai ser de mim quando deixar de ser cego?» Um dia, encontrava-me eu na cidade, vejo-o parado à beira de um passeio. Não vinha qualquer automóvel, mas havia uma curva perto. Eu atravessei e ele ficou parado a olhar para todos os lados. Houve um momento em que pôs o pé direito na rua mas retirou-o logo: «Então você agora é que tem medo de atravessar?» Ele olhou-me e disse-me: «Reconheço-o pela voz. Já sabia que o senhor era pequeno, mas não julguei que o fosse tanto!» O cego, aliás o ex-cego, estava de boca aberta, e, nisto, diz-me uma coisa espantosa: «Oh!, meu senhor, afinal os cegos têm medo de ver. Pode surgir um carro dali da curva e eu não ter tempo de ir para o outro lado.»
«Um cego ter medo de ver», pus-me a rir. «Essa realmente é muito boa.»
O meu Pai é que não ria.
«A história que te contei é uma anedota?», perguntou-me.
«Que é então?»
Olhava-o em desafio. «Então na história que te contei, aliás verdadeira, não há nada de terrível?»
«Terrível?»
Nem tentei procurar uma justificação para o adjectivo. Terrível, porquê? Mais valia considerá-la uma história de fadas. Imagine-se!, um cego com tanta sorte que lhe aparece um oftalmologista, como que caído do céu, e que torna a ver, quando há muito já perdeu as esperanças. Então enchia-se de medo de ver. «Medo de ver?» Era de escachar a rir.
«E que tal um paralítico com medo de andar?", ripostei, folgazão. "E um surdo com medo de ouvir? E um mudo com medo de falar? E um morto com medo de viver?»
Ria, claro, para me vingar. Também precisava de o ferir. Ele não achava piada nenhuma. Só murmurou, quase inaudível: «E um cérebro com medo de pensar?» Voltou-se para mim:
«Então tu não percebes que ninguém tinha ensinado o cego a ver? Puseram-lhe uma bengala nas mãos. A bengala tornou-se-lhe artigo de fé. Mas quem cuidou de ensinar-lhe como atravessar uma rua por si só, de olhos abertos, ele que sempre atravessara todas as estradas, pontes, picadas e vaus da ilha de olhos fechados, defendido pela bengala? Ele viera de um universo que conhecia. Do seu planeta de cego. Esse era o mundo que tinha aprendido, que lhe tinham ensinado, o mundo em que acreditava, em que depositava confiança, a que sabia responder.»
Suspendeu-se. Eu também parei de rir com a certeza agora confirmada de que a história prolongava a conversa acintosa de há momentos. Meu Pai realmente era habilidoso. Não dispunha de uma mentalidade apenas meramente óbvia. Diagnóstico que se me impôs no mesmo segundo que ouvi, do cofre das lembranças, esta frase de minha Mãe: «Teu Pai foi sempre uma luz debaixo de um alqueire. Quando nós namorávamos escrevia-me as cartas mais bonitas que até hoje se escreveram. Ainda hoje sei algumas de cor.» Logo se fechara arrependida do desabafo.
Ora eis o que me desagradava no meu Pai: a urgência de contestar, de convencer, de refutar, e, por certo, a de justificar-se como falhado. Isto num tom a roçar o ostentoso, ou o teatral. Como para demonstrar a exactidão do meu diagnóstico, fez outro longo gesto para o alto. Para o sol que morria? Alçando a cabeça e olhando-me como se fosse agora dois ou três palmos mais alto do que eu, intimou-me com a espingarda apontada do dedo:
«Então vem-nos, de súbito, uma luz de uma fonte inesperada, vemos o que nunca vimos antes, ficamos a saber que há todo um mundo para aprender e obstinámo-nos com a bengala? Então descobrimos que a luz de que antes dispúnhamos até nos encerrava no conforto da cegueira, e não nos assustamos? O problema do ex-cego é que ele tinha, além do mais, todo o seu mundo-de-cego para desaprender.»
No seu inesperado entusiasmo quase se ergueu do cadeirão, de tal forma que me roubava por completo o resto do sol. E eu a gozar aquele tão minguadíssimo calor com a avareza de Diógenes. Disse-lhe:
«Oh!, meu Pai, estás-me a tirar o sol!» Reclinando-se novamente na cátedra de palha, respondeu-me com estranhíssima calma:
«Não gostaria que me tivesses vindo ver, e de tão longe, para eu, como prémio, nem sequer te proporcionar um pouco de luz.»
Houve, de novo, um longo silêncio. A ala esquerda das nuvens forçava as barbacãs do cume do Calvário. A luta parecia desigual. A bruma venceria a pedra. Mais próximo do mar, mas muito mais enterrado no algodão negro do firmamento, o pico de S. Tomé já desaparecera do campo da batalha.
Que significaria a história do cego? Que meu Pai não se encontrava de acordo com a maneira como a juventude do país era conduzida? Ora a novidade! Se não errava na moral da parábola, esta constituía mesmo um insulto disfarçado ao Portugal contemporâneo. Que poderia querer significar senão que eu, como os meus iguais, vogávamos encantados num mundo que era imperativo desaprender? Teria meu Pai acabado de se me propor como o oftalmologista de que eu, na aparência, tanto carecia?
«O cego só começou a ter dúvidas depois de lhe restituírem a vista...»


Legenda: imagem de Michael Ancher tirada de «Sobre a Deficiência Visual».

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