quinta-feira, 16 de novembro de 2017

OLHAR AS CAPAS


Que Importa a Fúria do Mar

Ana Margarida de Carvalho
Capa: Rui Garrido
Teorema, Lisboa, Maio de 2013

Tersa gente esta, de almas baldias, vontades torcidas pelo frio que aperta, amolecidas pelo sol que expande. Ando aqui a ganhar a morte. Nestes campos de giesta, engatadas raízes no chão, tão presas de seiva e vontade que não as pode a força de um homem arrancar. Ervas daninhas mais difíceis de vergar do que um pinheiro bravo à machadada. O pinheiro deixa o coto apodrecido, vã ruína orgânica, mas as raízes das giestas mantêm-se sorrateiras, infiltrantes, debaixo da terra, a aguardar melhor ocasião para levantar haste. E, mal um homem vira costas, lá estão elas, sob os pés, soturnas, insinuantes, sôfregas de todas as pingas de água, a saciarem-se, a exaurirem as lavouras, sem sequer a gentileza de uma sombra, só pasto de insetos, refúgio de furões, conspiração do matagal. Assim ando eu. Entre mato rasteiro e bravio. Que a vida sempre me foi um ferro de engomar. Quando há um prego que se destaca, martela-se. E no entanto, mesmo amolgado e enterrado, continua lá.  
De quem é o carvalhal?
Ando aqui a ganhar a morte. A vergar-me a cada passo, nesta rabugem vegetal, com involuções de ouriço-cacheiro. Se me tocam, eu abro pico em todas as frentes. Que eu nunca pedi nada. Nunca encomendei sermão. Nunca enclavinhei a mão par dar um murro na mesa. Nem me caberia esmurrar a mais dilecta peça de mobiliário da casa. Onde os manjares eram pousados de mansinho  e arrebatados em silêncio, aspirares de estagnação e respeito – e, no final, as migalhas ajuntadas e receosamente pinçadas entre o indicador e o polegar.
Graças vos dou, meu Deus, por me teres dado de comer e beber sem o merecer, dai-me o céu quando morrer.
Rogávamos-Lhe o céu, ambicionávamos-Lhe a terra. Não a leveza dela em cima de caixão, que esses póstumos torrões não aconchegam, mas afrontam quem nunca teve terra em vida à mão de semear, e agora conquistava sete palmos dela, abençoada, quando os dedos gélidos e descarnados repousavam, entrelaçados, sobre o peito. Inúteis até para arrancar raízes. Tanta terra no mundo para morrer, tão pouca para viver.
Leva-me devagar. Que não fui tido mas fiz achado.
A alma é do criador e da santíssima virgem. E da terra também.
O achado é meu.
E de quem é o carvalhal?

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