segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

MAS FINGIA QUE NÃO PERCEBIA....


A páginas 364 das suas Memórias, Rómulo de Carvalho começa a contar aos seus tetranetos que, nos começos do ano de 1996, «lá mais para o fim do ano, em Novembro, completo os noventa, idade muito razoável para dar por terminada esta amarga experiência de existir», deu entrada no Hospital de Santa Maria.
D. Olga, sua calista, corria o mês de Janeiro, falou-lhe que tinha os pés inchados, e também as pernas. Passou-se Fevereiro, e no início de Março, «apareci com muita tosse e expectoração com sinais de sangue. Eu próprio me sentia fraco, no caminhar e no respirara, mas fingia que não percebia».
A mulher, Natália Nunes, falou com o filho que apareceu em casa com um médico das suas relações que o observou.

Eu estava sentado na minha cama, de pijama e chinelos, indiferente ao que se passava. O médico observou-me, auscultou-me minuciosamente, voltou a auscultar-me e disse, com voz velada mas segura, que eu tinha de r de imediato para o hospital.
(…)
Entrei no hospital no dia 6 e saí no dia 27. Estive internado vinte e um dias.
Imaginarão vocês, meus queridos tetranetos, o que seja estar vinte e um dias, de roupão, pijama e chinelos, à noite estendido na cama, de dia sentado num cadeirão a um canto do quarto, a olhar para o tecto, para o chão e as paredes, com uma agulha permanentemente espetada numa veia, agulha essa ajustada ao termo de um tubo de borracha que saía de um recipiente cilíndrico de vidro fixado no alto de um suporte metálico com três pés na base para assentar no chão. Para onde eu ia, ia aquilo tudo comigo.
(…)
Soube depois que durante os primeiros quatro ou cinco dias em que estive hospitalizado corri perigo de morte.
(…)
O quarto tinha um lavatório de parede onde a torneira da água fria não vedava bem e a água sempre a correr em fio. É claro que a direcção do hospital não sabe disso porque, se soubesse, mandava arranjar a torneira.
(…)
Quanto à comida, meus queridos tetranetos, mais ou menos sempre a mesma, mas quando era diferente tinha o mesmo gosto. Era comida fabricada e fornecida por uma empresa. Eu como sempre muito pouco, por falta de apetite e por a comida ser má.
(…)
E aqui estou. Não saio à rua porque me sinto fraco. Só acompanhado, e já o tenho feito, sob a protecção da vossa tetraavó Natália, É como quem vai passear o cão com a diferença de que o cão tem de ser passeado todos os dias, e eu só de vez em quando.
E como estou? Menos mal. Da grave moléstia que tive suponho que estou bem mas, do que padeço permanentemente, é das consequências da minha diverticulose intestinal, e suponho que essa virá a ser a causa do meu fim. Pois que venha esse fim, mas com o menos sofrimento possível. Este é que temo; não aquele.


Rómulo de Carvalho em Memórias 

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