segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

OLHAR AS CAPAS


Escritos Íntimos
2º Volume

Roger Vailland
Tradução: Ana Rabaça
Colecção Estudos e Documentos nº  209
Publicações Europa-América, Lisboa s/d

5 de Junho de 1956 :

Regresso de Moscovo.

À minha chegada, quinze dias antes, a estátua em pé de Estaline estava ainda no hall do aeroporto. No dia da minha partida, continuava lá, mas coberta com um resguardo branco. Em breve a vão retirar. Os homens da construção civil fixá-la-ão com nós corredios e puxarão a talha.
Cheguei a amar os tiques da sua linguagem. Colocava as primeiras pedras de um raciocínio, depois dizia «prossigamos»; adorei isso. Mas ao regressar a casa, foi bem preciso retirar o seu retrato da parede, por cima da minha secretária; deixá-lo, seria ter tomado partido contra aqueles que, lá, prosseguem a construção do mundo que ele começou a edificar, e a favor daqueles que, aqui ou algures, aspiram à tirania.
Nunca mais colocarei o retrato de um homem nas paredes da minha casa.
No canto da biblioteca reservado aos historiadores da Revolução Francesa tirei também as duas grandes gravuras da época, intituladas Jornada de 21 de Janeiro de 1793, Jornada do 16 de Outubro de 1793; vê-se aí o carrasco mostrar à multidão a cabeça de Capet, um outro carrasco erguer o cutelo da guilhotina, enquanto os auxiliares mandam subir para o cadafalso Maria Antonieta. A multidão aplaude. Convencional, teria votado pela morte de Luis XVI e pela de Maria Antonieta; quero com isto dizer que hoje ainda, em circunstâncias análogas, votaria a morte. Mas Meyerhold que amo, que amava, foi fuzilado, em execução de um julgamento injusto, ditado por Estaline, que eu amava. Nunca mais poderei alegrar-me por o sangue ser vertido, mesmo o dos meus inimigos, excepto se for por mim mesmo, em combate leal.

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